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NO TEMPO DA RUA DE BAIXO!

Jerdivan Nóbrega de Araujo* Foi muita chuva. Os mais velhos lembravam que nunca tinham visto tanta chuva nesta época do ano. A noite toda foi de desespero, mas, o que me lembro mesmo é que era noite de Natal. Tio Cândido passou a noite andando de casa em casa procurando ajudar aos desabrigadas. Muitas casas de barro e chão batido não resistiram e foram ao chão. Eu via aquele povo entrando sala a dentro na minha casa, com o resto que sobrou do que era seu. As crianças da minha idade chorando sem saber o que acontecia. A minha mãe espalhou por toda casa um grande quantidade de redes estendidas onde, em muitas se agasalhavam até três crianças: a noite é sempre fria quando não se tem um teto para se abrigar. A solidariedade do povo da Rua de Baixo é um lençol quente a abrigar todos, nestas horas de desespero. Eu não me importo se Papai Noel não lembra que existe criança na Rua de Baixo. Eu sei que Deus fica com raiva dos homens da Rua de Baixo que, aos domingos, deixam de ir à missa para jogar Ludo e tomar cachaça a sombras das oiticicas e ingazeiras à beira do Rio Piancó, mas, acho que não é justo que, em plena noite de Natal, Deus lave os pecados do povo com tamanho toró. Ele poderia pelo menos esperar até que as árvores de natal sejam guardadas para que possa castigar com chuva o povo da Rua de Baixo. O sol ainda não saiu e as pessoas começam a contar seus prejuízos. Quantas, e a casa de quem desabou? O rio fez água? Ainda dá para atravessar com água na cintura ou vai precisar da canoa de mestre Álvaro? Logo vem a respostas. O rio sequer sentiu a chuva que não foi uniforme, não atingindo os afluentes acima do açude de Coremas. Não vai ser preciso termos que sair da Rua de Baixo com as tralhas na cabeça, a procura de um lugar mais alto aonde o rio não venha nos perturbar. O meu medo era que ao amanhecer o Prefeito mandasse em cada casa a visita de seu Zé de Santa para aplicar injeção contra tétano. Não posso me esquecer daquela agulha de aço furando meu couro, como se fosse um espinho de mandacaru. Anda sinto a dor... Ouvia-se ao longe o berro das crianças: ele era impiedoso. A água escorria pelo meio da rua, vindo das partes mais altas onde a chuva não fazia lama. Eram as ruas calçadas e bem tratadas, onde seus moradores dormiram por toda a noite, após a ceia de Natal, sem se dar conta do desespero dos moradores da Rua de Baixo. Só terão essa noticia lá pelas oito ou nove horas quando as mulheres da Rua de Baixo que trabalham para eles começarem a chegar com certo atraso, para preparar a refeição de mais um dia de luta. Quando eles se sentarem a suas mesas e perceberem que Dona Isaura, por exemplo, não lhes veio esquentar o pão comprado na Padaria de seu Napoleão Brunet ou ferver o leite comprado lá em dona Delva e seu Arrudinha, colocando-o bem a sua frente, eles perceberão que o Natal da Rua de Baixo foi bem diferente dos seus, porém igual a tantos outros que se passaram e ainda hão de passar por aquela comunidade esquecida. Um dia igual a tantos outros! Não se ouviu o ronco da tuba de Zé Vicente nem tampouco trombone de Chico de Lourdes. Godô não apareceu para contar nenhuma história de Trancoso nem seu Dorsim passou com a cabaça para o lado do Araçá. Não se ouviu o grito de Seu Joaquim chamando por Nedina doida nem Seu Elizeu a procura de Nezim, o filho retardado. A hora é de contar o prejuízo, e, isso não se faz em voz alta. Edmundo, Pier, Pedro, e eu sentamos a beira da calçada e ficamos represando a água que ainda descia lentamente da parte de cima da cidade. Para as crianças de seis anos as tragédias só duram uma noite. A água trazia para a Rua de Baixo a lembrança de uma noite feliz na parte de cima da cidade. Caixas coloridas de brinquedo papéis de presentes e alguns brinquedos quebrados que haviam sido colocados no lado de fora das casas para que algum menino sortudo da Rua de Baixo, Rua do Fogo, Nova Vida ou Rua do Pereiros, pudessem fazer bom proveito. Chico de Godô e Crocodilo ainda não estão bêbados. Natércio rasga o chão a procura de iscas para pescar umas "piabas" para tirar gosto ao final do feriado de Natal. Mauricio Alves conta os filhos. Zé Martins não foi trabalhar nas Casas Bandeiras: é feriado. Vó Ana, já chegando aos 70 anos, passou para Outra Banda com sua enxada nas costas. Mesmo com rio cheio ela o atravessa a nado, mas, não deixa de cuida da sua roça. O pé de manga da roça de Dona Porcina amanheceu verdejante. Percebe-se que nasceu "babuje", no campinho de futebol que fica em frente a casa de Dona Raimunda. O Posto de Puericultura suspendeu a distribuição de Leite em pó e estaphilase para as crianças carentes de Pombal. A chuva que trás a tragédia é a mesma que renova a vida. Acho também que chegou um circo na cidade. Não vai haver tempo para se lembrarem da nossa noite de Natal. *ESCRITOR POMBALENSE
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