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DONA LO-URDES: MÃE E MESTRA

Era um dia de domingo do Rosário, pra melhor dizer, um 4 de outubro de um ano qualquer, da década de cinqüenta. Data do aniversário de dona Lo-urdes, minha saudosa Mãe. Por volta das onze horas da manhã, a banda de música Santa Cecília, capitaneada por Frederico Roque, adentrava a nossa casa ao som de valsas e dobrados para homenagear a aniversariante. Pouca gente sabe que dona Lo-urdes era versada em teoria musical, pois, foi aluna dos melhores professores de música, da sua época. Foi flautista habilidosa, a ponto de participar de Saraus promovidos por Dr. Mauricio Furtado, genitor do professor Celso Furtado. Conheci a sua flauta. Bem conservada, permaneceu por muito tempo guardada numa mala envolta numa flanela branca. Por ser de origem alemã, estava a precisar de um pequeno reparo, que não podia ser feito aqui na terrinha. Em certa ocasião, uma pessoa da família lhe falou que, em João Pessoa, havia alguém que seria capaz de fazê-lo e com certeza o instrumento voltaria à sua normalidade. Mãe entregou a sua jóia de estimação, envolta na mesma flanela branca, na certeza de que a receberia de volta sã e salva. Enganou-se. Até hoje ninguém sabe que fim levou a velha flauta, que tanta alegria proporcionou a nossa família. Minha Mãe tocava por música, pois lia quaisquer partituras, independente do gênero musical. Ensinou ao filho Chico, iniciação à teoria musical. Fui também seu aluno, mas nunca me interessei pela aprendizagem da música via teoria. Mesmo assim aprendi um pouco, mas preferi optar pela prática musical por meio da intuição ou de ouvido como se costuma dizer. Foi assim que aprendi um pouco de violão e teclado, digo, na lei do menor esforço. A minha praia era outra, posto que, ao decidir estudar fui tomado pela a ânsia de conhecer novos mundos através da leitura, portanto, o meu passa tempo predileto era ler tudo que me chegava às mãos. Naquela época, o jovem que lia era bastante assediado por ser considerado bem informado pelos segmentos mais esclarecidos da sociedade. Embarquei nessa onda, fato este que me transformou, até certo ponto, num leitor compulsivo. Na minha sede de saber li quase todos os clássicos da literatura brasileira, mas não conseguia encontrar o mundo real que tanto buscava. Certo dia, um amigo me passou um livro, uma brochura de bolso, que num primeiro momento me pareceu estranho, cujo título é ¨A Mãe. Esta obra redirecionou o meu modo de pensar e enxergar melhor os contornos da sociedade da qual fazia parte. Era uma bela descrição sobre a saga de uma Mãe que encampou os ideais do seu filho, a ponto de engajar-se na luta de rua em defesa da construção de um mundo melhor, tal qual como pensava seu filho, preso em razão dos seus ideais. O autor da obra era Russo e se chamava Máximo Gorki (1868/1936). Esse livro virou-me a cabeça. Não tinha nada ver com o romantismo de José de Alencar, com realismo do cotidiano de Machado de Assis, nem tampouco com a obra espiritualista de Humberto de Campos. Era tudo que eu estava, há muito tempo, a procurar e não encontrava. Como já disse, depois dessa leitura passei a enxergar o mundo de forma diferente. Como sempre, Mãe, de forma sorrateira, acompanhava todos meus passos, ao verificar as leituras que eu estava a fazer no dia-a-dia. A sua preocupação era tanta que vez por outra colocava sobre a minha mesa de estudos livros e revistas bem ao gosto dela. Não sei como conseguia, com muita freqüência, um livro-revista conhecida por Seleções, da editora Reader's Digest, de origem americana, que na verdade era um bem elaborado material de propaganda anticomunista, coisa típica da época da ¨guerra fria”. Havia um cidadão de nome Drew Pearson, excelente jornalista, que escrevia, na referida revista, os artigos de fundo, de conteúdo ostensivamente anticomunista. Denunciava, numa linguagem coloquial, o que supostamente acontecia além da cortina de ferro. Evidenciava a falta de liberdade individual, inclusive as brutalidades praticadas por Stalin contra seus inimigos, o que sufocava cada vez mais o povo oprimido da União Soviética. A propaganda contra a União Soviética trazia-me mais dúvidas do que certezas. Nos seus escritos o senhor Drew, dizia que o povo russo não tinha estímulo para viver, pois, Stalin, além de ser um ditador desumano, materialista, sanguinário, era também, um viciado e dependente químico da Vodka. Ademais, culturalmente, era medíocre, portanto, incapaz de tocar para frente o propalado plano de desenvolvimento Econômico, Social e Cultural, com vistas a tornar a União Soviética uma grande potencia militar/industrial em curto espaço de tempo, conforme houvera prometido ao povo russo. Ora, então me perguntava: como aquele povo sofrido, oprimido conseguiu expulsar o exercito de ocupação da Alemanha, aquartelado nos subúrbios de Moscou, juntamente com mais de cinco dezenas de divisões espalhadas no seu vasto território? Simplesmente dizer que o povo russo vivia aos frangalhos não passava de propaganda enganosa, que tinha como propósito maior alienar cada vez mais a juventude brasileira, nos anos cinqüenta. Era o que me levava a entender. Desse modo, quanto mais lia Seleções mais me sentia tomado por uma sensação de enganação, frente a realidade política que o mundo apresentava naquela época. O saudoso amigo Lacides Martins, da família Brunet, fazia-me companhia na exploração dessa nova fronteira política/ideológica, portanto, com muita freqüência trocávamos opiniões. Fizemos juntos o curso ginasial, onde conseguimos firmar uma amizade que perdurou aos últimos dias de sua existência. O amigo era estudioso, cheio de vida, de inteligência apurada, ademais, demonstrava muito interesse pelo novo quadro político que se desenhava no país, em particular na segunda metade dos anos cinquenta. Ficamos curiosos ao ouvirmos pela primeira vez a expressão, ¨política/ideológica, bastante em voga naquela ocasião. A dúvida foi dirimida quando um amigo que estudava em Recife nos explicou de forma bastante didática e detalhada. Assim conseguimos matar a nossa curiosidade. Trocávamos idéias e livros. Foi ele quem me passou Vidas Secas de Graciliano Ramos. Da mesma forma lhe repassei algumas obras de Josué de Castro e o Cavaleiro da Esperança de Jorge Amado. A esta altura já estávamos ligados na Revolução Cubana, pois, ele possuía um rádio velho a válvula, que nos permitia acompanhar passo a passo o avanço de Fidel e seu grupo em direção a havana. A torcida era grande. Em 1958, terminamos o curso ginasial, o meu amigo foi estudar em Natal, no Rio Grande do Norte e eu vim pra João Pessoa. Lá em Natal o amigo continuou com seus ideais e em João Pessoa, fiz o mesmo. Dona Lo-urdes, do alto da sua sabedoria, percebia a minha trajetória política e ideológica. Não reclamava, mas vez por outra me dizia: ¨cuidado meu filho, tenha muito cuidado¨. Olhava pra ela e entendia o seu recado. A Mãe Mestra (Mater et Magistra) sabia porque estava a me advertir e eu entendia o que se passava no seu coração. Coração de Mãe sempre bate forte ao visualizar a sua cria, por isso não se engana. O seu afeto por mim era forte, por isso, sempre foi real e sacrossanto. Por esta e outras razões nunca deixei de ouvir, não digo os conselhos, mas as palavras de sabedoria da minha Mãe, porque ela, verdadeiramente foi a grande Mestra quem me instruiu e me orientou para que eu entendesse melhor às verdades e mentiras que o mundo nos impõe ao longo da vida. Sem dona Lo-urdes jamais chegaria aonde cheguei. Jamais teria entendido o mundo como um complexo contraditório de interesses conflitantes. Através da sua sabedoria, da sua paz, da tranqüilidade, forjou-me, na exata medida, de quem sou. Ensinou-me que a raiva, o ódio, a ira, a avareza e a inveja impedem o crescimento espiritual do ser humano. Falava tudo isso, através de gestos, ações e na maioria das vezes usava a palavra de um modo simples, de fácil compreensão. Recebi o seu carinho ao longo da minha vida, pois, perdi meu Pai aos onze anos, portanto coube a ela a difícil tarefa de fazer-me um cidadão preparado para enfrentar os obstáculos da vida. Tenho certeza que, foi Deus que fez descer sobre ela eflúvios do amor filial, fraternal, sincero e puro. Minha saudosa e querida Mãe, que Deus lhe recompense por te sido uma Mestra exemplar, difícil função, que você desempenhou com sabedoria, galhardia e simplicidade. Beijos e abraços dos três filhos, que ainda estão por aqui, todos ainda de memória viva e sempre a lembrar os momentos alegres que passamos juntos a você, por um longo período de tempo. João Pessoa, 30 de Dezembro de 2008 Ignácio Tavares - Filho e dona Lo-urdes.
DONA LO-URDES: MÃE E MESTRA DONA LO-URDES: MÃE E MESTRA Reviewed by Clemildo Brunet on 12/30/2008 09:42:00 AM Rating: 5

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