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O IRMÃO DE GALDINO

POR PAULO ABRANTES DE OLIVEIRA*
Havia chovido muito durante a noite daquele sábado em Pombal. O domingo amanhecera ainda com o céu levemente nublado, mas depois de alguns momentos o sol brilhou cristalino, fazendo tudo voltar ao ambiente primaveril, com as borboletas voando sobre as flores silvestres que enfeitavam o oitão esquerdo da Matriz. As andorinhas em volta das duas torrezinhas da igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso chilreavam como se estivessem anunciando o dia de Natal. O mês era dezembro, talvez o mais belo do calendário.
Os “cavalinhos” do Parque Maia já se achavam armados, como era de praxe, todos os anos, durante a Festa do Rosário e no período natalino, defronte ao Bar Centenário. Geraldo Aquiles era o irmão mais moço de Galdino Mouta, do Cine Lux, garoto de uma vivacidade sem limites, que residia na Rua da Matriz, numa casa alta, antiga que costumava de lá sair com um bando de colegas para movimentar ruas da cidade, dando saltos por cima da cabeça, galos de briga, puxar carrinhos de madeira, mas não largava o carrossel. Estava ali deslumbrado vendo todo aquele movimento.
Pois, bem, dona Maria Clemilde, mãe de Geraldo Aquiles, naquela manhã clara de dezembro, havia mandado comprar vinagre e demais temperos para o preparo do almoço, impondo-lhe volta imediata. Como um louco a correr, partiu o garoto de calçadas a baixo. Pensava mais nos célebres “cavalinhos” do que na missão que a sua genitora lhe havia incumbido. E foi, sem hesitar, direitinho para o meio da gurizada que se aglomerava, festivamente, em volta do carrossel.
Logo veio o esquecimento de tudo: do tempero, das verduras e do vinagre. A garrafa não saía da sua mão, já bem suada, e no bolsinho da calça os níqueis tiniam como se estivessem a lembrar sua volta para casa. Somente a brincadeira estava em seu cérebro de criança alegre e galhofeira. Em casa, a mãe impacientava-se com o seu regresso. Na janela, debruçada, perguntava a todos que passavam se tinham visto o filho que saíra de casa logo cedo. Mandou alguns recados e tudo em vão. O sol já se aproximava da metade do céu, não suportando mais aquela ausência resolveu sair a fim de procurá-lo no meio da multidão que imperava na cidade. Andou quase tudo.
Às pessoas amigas recomendava informar quando fosse visto o filho desobediente. Há muito que já era para ter chegado. O movimento na rua era intenso. Os matutos se confundiam naquele vai-e-vem sem parar. Difícil seria encontrá-lo naquele fervedouro humano. Resolveu, aflita, voltar para casa. Os vizinhos a conformavam de que logo Geraldo Aquiles apareceria. Chica do Padre, que conhecia as ruelas todas em torno da Matriz, de cor e salteado, prontificou-se a cooperar na procura do menino.
Ignorando a agonia da mãe e esquecido das compras, Geraldo Aquiles se deliciava satisfeito com os colegas, naquele ambiente não muito recomendável misturado com gente de toda espécie, na maioria feirantes alcoolizados e até mesmo cabrochas da Rua do Cachimbo Eterno que soltavam, de quando em quando, certas obscenidades.
- “Menino, fecha os olhos e tapa os ouvidos, danado, disse uma que se encontrava na cadeira pertinho dele. Tudo isso ao som do fole de Love. E os “cavalinhos” a rodar velozmente impulsionado pelos músculos de homens fortes, da Rua de Baixo, ajudados pelo Chico de Ernesto também, que dirigia o funcionamento do Parque Maia. “Espore o animal! Espore o animal!”. Gritavam, em coro, aqueles mais animados.
Lá pras tantas, nem as compras e nem o dinheiro. A garrafa havia sido quebrada e os “cobrinhos” gastos nas voltas dos “cavalinhos”. O garoto, agitado pela brincadeira e queimado pelo sol inclemente daquele dia, já começava a sentir remorso pela falta cometida. Em meio a tanto calor, às vezes sentia frio. Era a cabeça cheia de arrependimento. Coçava-se todo. Meio-dia em ponto, badalava o relógio da Coluna da Hora. As pedras do calçamento queimavam-lhe os pés.
E, num estado de ansiedade, a pobre criança começava a arquitetar projetos com o fito de encontrar uma maneira de se sair quando em casa chegasse. Sentou-se na calçada do Armarinho de Zuza Nicácio, e com a fronte voltada para o chão, chorou baixinho, vendo as lágrimas caírem. Por que não fizera as compras que a mãe lhe mandara logo cedo para depois voltar a casa e pedir-lhe permissão a fim de brincar nos “cavalinhos”?. Dizia Geraldo Aquiles, em solilóquio, a esfregar o rosto suarento. Não mais havia remédio e o único problema seria mesmo apresentar-se em casa, contando tudo e dizendo o que cometera.
Reconhecia ele a desobediência. Tinha que pedir perdão à sua mãe. Atraído pelos colegas esquecera-se de cumprir o seu dever. E, de cabeça baixa, olhando o chão, como se estivesse a contar passadas saiu dali macambúzio em direção da sua residência. Dobrou o beco do castelo de Dona Jarda, penetrou na Rua Nova, atingindo o prédio da velha Cadeia Pública, encontrou-se com Chica do Padre, que foi logo lhe dizendo:
- “Menino, sua mãe anda doida à sua procura, que é feito de você?”. Aquilo fora mesmo que uma espetada no coração. Nada disse, quedou-se em silêncio. Nem sequer uma palavra balbuciou. Logo subiu a praça Getúlio Vargas, acabrunhado, taciturno, pensando, bem preocupado e junto da sacristia, encostou-se. Parecia um adulto. De lá percebeu que a mãe estava na sala de jantar, e correndo entrou pela janela abraçando-se com ela, chorando muito.
-“Menino, onde estava você?” Exclamou dona Maria Clemilde, debruçada sobre a cabeça do filho, a beijar carinhosamente, os seus cabelos. Geraldo Aquiles tremia, e um choro convulsivo embargava-lhe a voz. - “Você está com fome, está?”. - “Estou, mamãe”. - “Olhe, esta vez não lhe baterei, mas... vá almoçar, vá”.
Dona Maria Clemilde pensava no futuro do filho, e vendo-o sentado à mesa, uma nuvem de melancolia cobriu-lhe o rosto envelhecido precocemente.
Através da janela que dava para o quintal, se descortinava um horizonte rosa-violáceo, imenso e belo. Após o almoço do filho, Dona Maria Clemilde começou a rezar o seu rosário de contas prateadas, andando de um canto para o outro da sala, pedindo a Deus pela felicidade do filho.
*Pombalense, Engenheiro Civil e Professor Licenciado em Ciências pela UFPB, pós graduação em Comercio Exterior pela FGV-RJ.
O IRMÃO DE GALDINO O IRMÃO DE GALDINO Reviewed by Clemildo Brunet on 12/13/2009 06:28:00 PM Rating: 5

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