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QUANDO O PAI TELEFONAVA.

Neste dia dos pais, quero resgatar uma crônica que publiquei em jornal...
Tarcísio Pereira

                                               Quando o pai telefonava

               Tarcísio Pereira*






Tilinta o telefone na casa de Dona Odete. Ela atende e, depois, sai correndo pela calçada, aos gritos:

– Corre, Neomísia, é ligação de São Paulo!

Isso acontecia uma vez por mês, e faz trinta anos. Na nossa rua, telefone era artigo de luxo, assim como a televisão. Pouquíssimas famílias tinham o aparelho em casa. Das poucas, Dona Odete era a única que nos dava acesso – desde que fosse para receber, nunca para ligar.

De maneira que meu pai ligava de São Paulo uma vez por mês, quando recebia o salário e se instalava durante cinco minutos num posto telefônico da capital paulista. Cinco minutos apenas, conforme o seu orçamento. E tínhamos que falar às pressas. O desespero maior era o de Dona Odete, quando morria de gritar e ninguém escutava.

– Corre, Neomísia! Vem depressa, que telefone tá caro!

Em poucos instantes a notícia se espalhava na rua. E todos os filhos de Seu Abílio, onde estivessem, desabavam correndo à casa de Dona Odete. Uma vez eu estava no centro da cidade e a notícia chegou por lá:

– Seu pai está no telefone. Vai falar com ele não?

Nunca corri tanto em minha vida. Mas ainda alcancei os instantes finais daqueles cinco minutos. E deu tempo de dizer, arquejando:

– Alô, pai?

E tempo de ouvir uma bronca lacônica, vindo de São Paulo:

– Onde você estava, moleque?

Um mês inteiro de remorso. As três irmãs tinham tido tempo de falar com ele – deram as notícias de casa, dos estudos, das despesas e dívidas na bodega de Cazuza, das coisas de rotina. Eu nada falara, sequer ouvira o beijo de despedida, que a ligação caíra em meu pleno cansaço.

Por conta disso passei a ter mais cuidado: ele sempre ligava entre as duas e três horas da tarde. E nesse horário, sempre que eu saía de casa, ouvia a recomendação de Dona Neomísia, minha mãe:

– Não vá para muito longe, que o seu pai pode ligar hoje.

De repente tenho agora um celular nas mãos. E duas filhas ausentes, ainda bem mais distantes do que meu pai nos anos setenta, quando ficava esperando durante trinta dias para correr esbaforido à casa de Dona Odete. Com esse minúsculo aparelho, enfiado no bolso a qualquer hora do dia, já não preciso esperar um mês para ouvir as vozes de Amarílis e Alana. Quase todos os dias cruzam-se os torpedos através do mar, e em questões de segundos. Qualquer tipo de comunicação é importante, qualquer mensagem traz em si a emoção do contato, mas convenhamos que a facilidade é tantas vezes frívola, já que o milagre é sempre previsível.

“Bom dia, filha. Como estás? Bj. Te amo muito.”

O bip toca em seguida com a resposta:

“Bj. Também te amo. Estou indo para o shopping.”

Caramba. Eu fico então sabendo o que ela faz no momento. E resolvo retribuir, para que a filha também saiba o que eu faço agora:

“Estou escrevendo uma crônica sobre os nossos telefonemas. Leia depois na internet. Bj.”

A outra já tem dezoito anos e, quando envio um torpedo, geralmente responde assim:

“Oi pai. Tô na net. Entra no MSN e vamos conversar.”

Às vezes nem temos o que conversar, e sinto que fazemos esforço para encontrar um assunto consistente. É tudo muito prático, tranquilo, sem aquele cansaço de quem veio correndo para chegar à casa de Dona Odete. Ainda assim, quando o assunto esgota, sabemos secretamente que existe uma angústia, uma certa forma de ansiedade latente como aquela outra, de trinta anos atrás, durante os cinco minutos que estavam no orçamento do Senhor Abílio.

Distâncias se aproximam com o tempo, e a rapidez da comunicação ameniza saudades que antigamente matavam. A presença física, porém, é algo que nenhum homem conseguirá resolver por meios mecânicos. É a facilidade que nos acolhe através da voz ou da imagem eletrônica, mas é a mesma facilidade que às vezes nos frustra, ouvindo coisas assim:

– Oi, pai. Me liga depois. Não posso falar agora.

E não sei se triste, ou alegre, eu lembro de Dona Odete correndo na calçada, gritando para a rua inteira:

– Corre depressa, Neomísia, que telefone tá caro!


* Pombalense, Teatrólogo e Escritor - João Pessoa - PB
QUANDO O PAI TELEFONAVA. QUANDO O PAI TELEFONAVA. Reviewed by Clemildo Brunet on 8/10/2010 04:58:00 PM Rating: 5

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