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REPRISANDO A CRIANÇA

Severino Coelho
Por Severino Coelho Viana*

O tempo das crianças de hoje é outro completamente diferente daquele vivido no nosso Torrão sertanejo quando uma patota de menino corria rua acima e rua abaixo, formava tribo nas guerras de ruas, saltitava no areal do rio Piancó e terminava a noite com o piscar das luzes acesas nos postes de madeira que iluminavam a modesta cidade interiorana.

Como quase todas as crianças pobres das pequenas cidadelas que o sol ardente das manhãs e tardes ensolaradas encontrava uma sombra na folhagem dos pés de oiticica e no frio das madrugadas invernosas se apoiava no cobertor de saco de açúcar. Assim era a vida de uma criança nem rica nem pobre; mas feliz, sem o poder de alcance do olhar perseguido pela vingança dos homens maus e as labaredas abrasantes do olhar perigoso da inveja, que ainda vivia encantado no seu mundo de inocência.

Os dois pares de sapato eram usados de forma distintiva: o diário calçado no dias de escola; enquanto que o semanal era somente usado para assistir às missas dominicais, aniversário de amigos e nas festas tradicionais. O bom mesmo, mais alegre e mais emocionante era andar descalço na lama deixada pelas chuvas, depois fazer açudes nas junções das avenidas pelas águas deixadas e melar as pernas na enxurrada correndo nas ladeiras, escondendo os arranhões e cortes nos pés pelos os cacos de vidros do monturo que eram levados no lamaçal.

A euforia da diversão comungava com um mundo de simplicidade que o rodeava, sem as formas estilísticas da vida moderna, quando à época não existiam os chamados brinquedos industrializados, os jogos caros de vídeos games, nem os jogos eletrônicos dos mp4. A nossa mente estimulava-se pela criatividade. Como uma mente que não encontrava espaço entre o céu e a terra, criado no seu mundo imaginário e concretizado pela ação prontificada, por exemplo, da estaca do cabo de vassoura nascia um cavalo, mais bonito do aquele de Zorro; os carros de brinquedo feito manualmente que cintilavam com o brilho da lata de óleo; de um pedaço de tábua e quatro rolimãs formava a nossa bicicleta, que chamavam de patinete; o nosso estilingue, conhecido por bodoque ou baleeira, formado da forquilha, que chamávamos cambito, duas ligas e sola de couro era nossa arma predileta, na caça de calango, nos terrenos baldios de dona Neca ou para matar as rolinhas caldo de arroz nas embrenhas das Carvalhadas. O jogo de bila ou bola de gude, outra diversão que sempre acabava em briga; com os piões e as carrapetas punhados à linha que rodeavam no solo de chão batido e um macio avermelhado. Toda farra de peraltices só acabava com o jogo de bozó ou apostas no ludo, cujo dinheiro era nota de cigarro, quando o vencedor era o menino mais rico do pedaço (Eldorado, Kent, Continental, Ministro, Hollywood).

A infância se derramava de alegria, generosa na sua origem, bondosa no seu nascedouro e fertilidade na essência porque é criação Divina. Nesta fase, o tempo passa lentamente, os dias se tornam imensamente longos, que bom se não terminasse nunca! Atualmente, o tempo passa como um piscar de olho, ou não passa, some! Nós é que peregrinamos nas suas migalhas de vivência. Havia tempo para tudo: escola, deveres de casa, esporte, brincadeiras, visita aos amigos e parentes, e, ainda, sobrava alguma coisa para o seu recomeço.

E a disciplina paterna impunha-nos limites, além dos assuntos particulares que eram reservados aos adultos, havia determinação na menor regra de proteção: tomar banho antes do café da manhã e do jantar, toda a família reunida à mesa no horário das refeições, dinheiro curto para as matinês de domingo, o desejo livre de ansiedades e isento do consumismo desenfreado.

O nosso mundo mudou e mudou para pior, com uma ligeira tentativa de acabar, inclusive, recriou um novo mundo infantil. Os valores são incorporados através da mídia, sem o compromisso de uma formação valorativa. A incivilidade reina de ponta a ponta e quando chegar à fase adulta há muito caiu no mundo do deboche, desde a forma de cumprimentar ao estilo de falar, do modo de aprender ao estilo de viver, pois a falta de reconhecimento de valores éticos destruirá o futuro mundo de nossas crianças, de hoje, ou seja, acabou também a infância. Quebra-se o encanto do sorriso, rareia o sentimento de respeito, esfumaça a dignidade e degrada o próprio fator de humanismo. A rua, mesmo de paralelepípedo, não só está interditada, mas suja; o quintal de hortaliça desloca-se para o shopping e instala-se a praça de alimentação, com os quitutes recheados de obesidade; de diversão transformou-se no desejo contabilizado; a alegria enfeitou-se e maquiou-se de uma cor desnaturada; os brinquedos caros e descartáveis, pois não passam de jogo remunerável que sufoca o bolso paterno, mas é modernidade.

O pior de toda essa história parece que houve uma assimilação material por parte dos pais, pois estes não querem que seus rebentos sofram qualquer sentimento de menosprezo. A tecnologia faz bem à coordenação motora da pequena criança. Será que assimilou o aspecto da criatividade do próprio filho? Fazendo o devido acompanhamento escolar e comportando-se com o devido requisito de respeito mútuo?

Na verdade é um mundo encantado, que quando acaba a fase, só nos resta saudade e vontade de querer voltar, com a mesma certeza de que não encontrará tanta maldade nas personagens do reino infantil, neste mundo materializado de desamor, incompreensão, intolerância e mesquinhez.

João Pessoa, 05 de outubro de 2010.

*Promotor de Justiça. João Pessoa PB

REPRISANDO A CRIANÇA REPRISANDO A CRIANÇA Reviewed by Clemildo Brunet on 10/05/2010 08:50:00 PM Rating: 5

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