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CÍCERO DE ERICE

Ignácio Tavares
Ignácio Tavares*

Quem não conheceu Cícero de Erice? Como esta figura bizarra veio parar em Pombal? Não sei. A sua cidade natal ninguém sabe. Cícero, ao longo da vida, foi uma figura de origem desconhecida, que apareceu aqui na terrinha.

Até hoje ninguém sabe dizer de onde veio. Sempre que alguém o interpelava sobre o seu lugar de origem, vagamente, respondia: sou do brejo. Da mesma forma, sobre seus pais, irmãos, silêncio absoluto. Enfim, Cícero era mesmo um estranho no ninho de origem ignorada.

Às vezes dizia que na sua infância morou lá pras bandas do sul. Quando a gente perguntava, em que estado do sul viveu a sua infância, ele respondia: no sul de Pernambuco. Todos esses desencontros deixavam as pessoas cada vez mias desinformada sobre a verdadeira origem de Cícero.

Conheceu Erice, não sabemos como. Erice descende de escravos pertencentes à família Cardoso D’Arão. Os seus irmãos foram embora de Pombal, mas preferiu ficar atrelada a nossa família até os últimos dias de sua vida.

Casou-se com Cícero, mesmo sabendo dos seus momentos de altos e baixos na convivência do dia-a-dia. Do casamento nasceu José, o famoso Karin, que foi por muito tempo lateral do São Cristóvão, Oziel, Neusa, Creusa e Iremar, o mais moço de todos.

Erice vivia a prestar serviços domésticos em casas de pessoas da família. Cícero trabalhava como prestador de Serviços eventuais diversos. Noutras palavras, vivia de bicos, seja trabalhava dia sim, dias não. Era uma figura irreverente, excêntrica, por isso indiferente às formalidades da vida.

Trabalhou algum tempo com o meu pai. A relação de trabalho entre os dois era atípica, pois não havia uma remuneração fundamentada no justo valor. Na prática essa relação fazia transparecer uma espécie de mais valia as avessas. Quero dizer que Cícero recebia uma remuneração muito acima do valor que era capaz de gerar como trabalhador rural.

Meu pai o tolerava porque era seu amigo, ademais, admirava suas peripécias. Isso mesmo, o meu pai divertia-se a valer com as suas artimanhas. Em pleno horário de trabalho inesperadamente retirava-se com a justificativa de que ia tomar água e por lá ficava. De tanto demorar, meu pai ia até a oiticica, onde se localizava o rancho, e flagrava Cícero a dormir a sono solto.

Pai o chamava: “ô Cícero! ô Cícero! Ora, ora, voce está dormindo ô rapaz, logo agora, em pleno horário de trabalho”? Cícero abria os olhos e se justificava: ora Zeca, após o almoço você sabe que tenho direito à uma hora de sono. Não é verdade? Assim sendo quero dormir mais um pouquinho pra ficar mais disposto quando acordar. Completava: “você vai findar me matando de tanto trabalhar”! Meu Pai ria e deixava Cícero prá lá a curtir o habitual sono preguiçoso.

Ana, minha avó, na época da cata do algodão contratava um exercito de mulheres. O ganho era por quilo catado. Cícero aparecia e se oferecia pra fazer parte do grupo. Ana já conhecia muito bem a preguiça de Cícero. Aceitava, mas, impunha algumas regras para evitar que ele contaminasse o grupo com seus lampejos de preguiça. Trabalhava separado das mulheres. No final da tarde, as catadoras pesavam o algodão, cujo peso, em média girava em torno de cinqüenta quilos por pessoa.

Cícero chegava mandava pesar o algodão que mal dava vinte quilos. A balança era uma haste pendurada numa das linhas da casa de farinha, da qual desciam quatro cordas de cada lado que davam sustentação a dois lastros de madeira. De um lado eram postos os pesos e do outro os sacos de algodão. Para pesar o algodão usava pedras equivalentes a um quilo, dois, cinco, dez, vinte até cinqüenta. Eu ajudava a minha avó a fazer as pesagens.

Os pesos eram corretos. Mas Cícero depois de constatar a pesagem do seu algodão, ficava a resmungar baixinho para que minha avó não escutasse. O que dizia então? Algo que minha avó não podia escutar, assim como: “essas pedras de Sá Ana escondem o peso do meu algodão”. Continuava a falar: “vejam só, Lolinha catou cinqüenta quilos e eu só catei vinte”?

A minha avó soube das críticas de Cícero e reagiu ao seu modo: “olhe aqui seu preguiçoso você não precisa mais vir amanhã, pois está dispensado, viu”? No outro dia Cícero era o primeiro a se apresentar para mais uma jornada de trabalho, como se nada tivesse acontecido.

Certe vez o empresário do setor de panificação, o senhor Napoleão Brunet de Sá, proprietário da Padaria Vitória, estava a precisar de uma pessoa pra ajudar na remoção de sacos de farinha de trigo, entre outros serviços que exigia o mínimo de força física. Contratou Cícero. Seu Napoleão a cuidar de uma coisa e outra não teve tempo para prestar atenção ao que Cícero estava a fazer. De repente, correu o olho e viu Cícero sentado com um saco de bolacha entre as pernas.

Ora, seu Napoleão reclamou na hora: “olhe aqui Cícero eu contratei você foi pra trabalhar e não pra comer bolacha”!! Cícero de boca cheia, sequer podia falar, engoliu as bolachas e reagiu: “ah, crente miserável, não faz nem duas horas que eu como bolacha”! “Desse jeito não trabalho aqui não, viu”?

Seu Napoleão completou: “o que foi que você fez até agora a não ser comer bolacha? Pode ir embora, quem não quer você aqui sou eu, ta certo”?. Conclusão, foi dispensado antes de assumir o emprego. Pra Cícero, um emprego a menos ou a mais, pouco lhe importava. O que gostava mesmo era vagar por aí na busca do prazer de viver sob a lei do menor esforço.

Vez por outra vinha a João Pessoa e nos procurava na Casa Universitária. Eu e Valtécio, sempre que Cícero aparecia conseguíamos um lugar pra arrumar a sua rede. De tanto se hospedar na Casa Universitária tornou-se querido no meio estudantil. Com muitas reclamações fazia os pequenos serviços na Casa Universitária quando era solicitado para tal.

Éramos 42 moradores e todos gostavam de Cícero. Vez por outra almoçava com a gente no restaurante universitário. No final de semana saia à procura das famílias de Pombal, que moravam em João Pessoa. Ali almoçava, jantava, ainda amealhava alguns trocados.

Certa vez falou que ia à casa de Dr. Lourival que morava na Torre. Não sei como chegou até lá. Foi bem recebido, almoçou e conversou muito. Lá pras tanta dona Lourdes falou: “Cícero já que você está aqui vamos fazer uma limpeza no muro”?

Segundo ele, passou a tarde todinha tirando lixo do muro e quase que não acabava. Terminado o serviço dona Lourdes pagou e liberou Cícero. Quando ia saindo, lembrou-se que estava na hora do jantar. Adorava uma boca livre, principalmente quando visitava os conterrâneos.

Assim sendo aproveitou o momento e falou: “ ô dona Lourdes será que vou sair daqui com fome sem comer nada”? Indagou Cícero. Dona Lourdes riu da esperteza de Cícero e respondeu: “não senhor, vou preparar uma sopa pra você, tá bom”? Pois é, Cícero comeu alem do limite, a suculenta sopa preparada por dona Lourdes. Acontece que Cícero tinha uma intolerância a gordura, por conta de uma insuficiência hepática, em razão dos porres de cachaça, que costumava tomar.

Assim por volta de sete horas da noite, estávamos eu e Valtécio a conversar na porta de entrada da Casa Universitária. À distancia avistamos Cícero a caminhar, a passos largos, gesticulando com as duas mãos, como se estivesse a reclamar de alguma coisa.

Quando nos viu foi logo dizendo: “esse menino, eu sei que dessa vez não escapo. Avise a Erice que eu comi uma sopa na casa de Dr. Lourival e botaram veneno dentro”. Se eu morrer vocês avisem a Erice pra ela tomar as providencias.

A azia que Cícero estava a sentir era de fazer pena. Ia num canto ia noutro, respirava fundo e nada da azia passar. Antônio Rodrigues, na época estudante de medicina, de saudosa memória, foi lá no seu quarto trouxe uns comprimidos de Kolantyl Gel deu-lhe com a recomendação de tomar um de duas em duas horas. Deitou-se na rede, puxou um sono, em pouco tempo levantou-se a rir de felicidade porque a azia havia passado.

Dada a alegria de Cícero depois de curar-se da azia perguntamos: e agora Cícero, a gente pode dar aquele recado a Erice? Não de jeito nenhum, dona Lourdes pra mim é uma Santa. Deus me livre, jamais vou pensar nessas coisas. Continuamos: e agora você vai a casa de dona Lourdes pra comer mais uma sopinha? Não, Deus me livre. Nunca mais vou comer sopa na minha vida. Meu negócio agora é feijão com carne e arroz.

Foi a última vez que Cícero foi a João Pessoa. A doença do fígado agravou-se, levando-o a óbito. Morreu da mesma forma que apareceu. Até hoje ninguém sabe de onde veio. Da mesma forma morreu, ninguém soube, ninguém viu.

Poucas pessoas amigas, com certeza do Cacete Armado, foram a sua casa para assistir à sua última quimera. Dos que se faziam presentes, alguns, conversavam a lembrar as peraltices do falecido, enquanto esposa Erice, a filha Creusa pranteava a sua morte.

Eu mesmo soube do seu falecimento muito tempo depois. É isso aí. Cícero veio não sei de onde, enterrou-se não sei aonde. Nada faz lembrar sua presença em Pombal. Com certeza os dois filhos remanescentes, Creusa e Iremar guardam boas lembranças do saudoso pai que detestava trabalhar, mas, morria de felicidade quando era amparado por pessoas amigas.

De certa forma, apesar dos pesares Cícero continua entre nós. Mas, como costuma acontecer com os mortos sem expressão social, ninguém sabe onde foi enterrado, posto que os administradores do Campo Santo, sequer se dignaram fincar uma cruz de madeira sobre a sua cova rasa com modestos dizeres: ¨aquí jaz o mirrado corpo de Cícero de Erice. Viveu na pobreza, portanto, sem eira, sem beira. Por isso foi simplesmente Cícero de Erice e nada mais¨.

João Pessoa, 12 de Outubro de 2011

*Economista e Escritor pombalense
CÍCERO DE ERICE CÍCERO DE ERICE Reviewed by Clemildo Brunet on 10/12/2011 05:32:00 AM Rating: 5

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