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OITICICAS DO ZÉ RODRIGUES: O TERROR DE AGÚ

Ignácio Tavares

Ignácio Tavares*

Esta estória quem me contou foi o saudoso parente e amigo, o advogado, auditor fiscal da receita federal, poeta, escritor, Agú Rodrigues dos Santos, falecido há pouco tempo.
Na sua infância teve uma vida tipicamente rural, assim como a maioria dos jovens da sua época. A propriedade da família conhecida por DZ localiza-se bem próxima a cidade. Pra chegar até lá ou retornar, obrigatoriamente, tem que passar pelas temidas oiticicas, tidas como mal assombradas, que ficam às margens do riacho do Zé Rodrigues.

Essa travessia mexia com os nervos do amigo Agú, posto que, toda vez que
era obrigado a fazê-la, no decorrer do dia ou da noite, não havia como se libertar do medo. Às vezes era obrigado a buscar atalhos que o evitasse passar pelas  oiticicas do riacho, mesmo a plena luz do dia.

Filho de Emília Rodrigues de Alencar e Esaú Rodrigues dos Santos. Em sendo o regarço mais velho, de uma prole de mais de dez irmãos, era bastante mimado pela Mãe. Cresceu sob o calor do carinho materno, sempre a ouvir conselhos serviram para formação da sua personalidade. Quando adolescente vinha pra cidade todo dia, pois, estudava na escola do professor Newton Seixas. Ao retornar pra casa, ficava atento pra não ter que enfrentar a escuridão, no momento da travessia do Riacho.

Pra prevenir-se ficava a esperar os amigos da região, que estudavam na mesma unidade de ensino. Assim, todos juntos faziam a temível travessia, sem riscos de sobressaltos. Agu logo cedo foi informado, por pessoas próximas, sobre os fatos desagradáveis que costumam acontecer naquele trajeto mal assombrado. Pelas estórias que ouvia, contadas por gerações presentes e de antigamente, através da tradição oral, o jovem entendia que não era fácil fazer aquela travessia, altas horas da noite, principalmente sozinho. Passar naquele lugar era um desafio e tanto, que poucos tinham a coragem de enfrentar.

O pai de Agú evitava transitar pelo riacho, principalmente, quando o sol desaparecia no horizonte. Seguindo o exemplo do pai, o filho evitava o temido caminho, a qualquer hora do dia ou da noite. Repito, quando por lá passava sempre estava acompanhado de alguém, mesmo assim estava atento ou preparado pra correr, se necessário fosse. O comentário que o povo fazia era de que, em épocas passadas naquela travessia houve várias escaramuças e emboscadas, entre inimigos, por questões de terras, que resultaram em sacrifício de muitas vidas. Desse modo as pessoas assassinadas nesse lugar ainda vivem a atormentar as pessoas da região.

As questões de terras eram o motivo maior para tantos assassinatos. Como a posse da terra, naquela época, acontecia sem o registro legal em cartório, os poderosos do município, com o intuito de se apropriar das terras vizinhas, afugentavam os posseiros, através de ameaças, muitas delas concretizadas.

A história registra que muitas famílias foram reduzidas ao estado de pobreza e miséria, por haver perdido suas terras nessas circunstâncias. A família do poeta Silvestre Honório foi uma das vitimas da sanha ambiciosa dos grandes fazendeiros da terrinha. Os seus descendentes, entre os quais o senhor Manoel Terto, o pai de Cancão, viveram e padeceram na pobreza.
Pois é, o amigo Agú certa vez, contra a sua vontade, teve que cruzar o riacho do Zé Rodrigues, justo num horário considerado proibitivo para um jovem da sua idade. A razão dessa medonha travessia deveu-se a um fato desagradável a envolver sua Mãe e seu Pai.

Emília, sua mãe, uma das trinta e duas filhas de Zé Liberato de Alencar, juntou sua economias, resultante da venda de porcos, galinhas, ovos, comprou um corte de tecido e mandou o saudoso Sindô Gouveia fazer um uniforme (calça e Paletó) pra o Filho primogênito.
O moço havia completado dezesseis anos, precisava apresentar-se melhor no meio social, principalmente, no decorrer da Festa do Rosário. Tudo isso foi feito sem o conhecimento de Esaú. Talvez tenha sido um erro da sua Mãe não ter falado pra o marido, que o filho estaria a envergar uma roupa nova naquele momento festivo.

Agú estava muito feliz, ante a expectativa de se  apresentar perante os amigos e amigas bem vestido, de paletó, gravata, sapatos novos e no bolso um vistoso vidro de perfume Lancaster, à disposição, para brindar os amigos com uma leve borrifada de um raro produto de marca.  
Hospedou-se na casa da sua tia Dulu, sua futura sogra. Á noite tomou banho, jantou, trocou de roupa e partiu em direção ao centro da cidade. Todo ancho, na certeza de que estava a abafar, posto que, um jovem bem vestido, perfumado, era bastante assediado pelas moiçolas bonitas da cidade.

Era isso o que Agú mais queria. Pretendia ser o centro das atenções. Para poder ser visto, pelos amigos e amigas, pôs-se a desfilar pelo adro da Igreja do Rosário onde as moças da cidade costumavam se reunir antes do início da novena. Eis que do meio da multidão alguém grita: “Ei, seu moço, de quem é esta roupa que você está a usar? Tomou emprestada a quem”? Era o seu pai Esaú. Meio desconfiado o jovem responde: sim papai, esta roupa é minha. De olhar fixo para o chão, tomado pela timidez, continuou a falar: Mamãe mandou fazer na alfaiataria do seu Sindô Gouveia.

Esaú, não satisfeito com a resposta, perguntou: “onde a sua mãe conseguiu dinheiro para mandar fazer essa roupa? Completou: já sei esta mexendo no meu dinheiro que guardo no baú que está lá no armazém, não é? Quando chegar a casa ela vai ter que me explicar isso”!
Depois de olhar pra o filho, dos pés a cabeça, advertiu: “olhe aqui seu moço, preste atenção, viu? Vá embora pra casa, tem mais, não esqueça, quando eu chegar vou  acertar com a sua mãe. Quero saber d’onde saiu este dinheiro pra comprar a sua roupa, viu”? Ouvi sim senhor, respondeu Agu.

Reagiu Agú: Papai entenda a minha situação, pois, estou hospedado na casa da tia Dulu, tem mais, não tenho coragem de ir sozinho pra casa! Por que o senhor não vai comigo? É só o que faltava seu atrevido! Respondeu o pai. Vá sozinho seu engraçadinho, justo pra você perder esse medo de andar a esta hora da noite, viu? Você já tem idade pra ser um homem destemido como o seu pai!

De dedo em riste o Pai falou: “olhe seu moleque não se atreva desobedecer a minha ordem, ouviu”? Movido a choro e medo, respondeu: ouvi sim senhor. Garanto que vou agora mesmo. Foi o momento mais difícil da sua vida, falou-me Agú. Pois estava a perder a Festa do Rosário, no seu ultimo dia, ademais, ainda tinha de enfrentar a travessia do riacho do Zé Rodrigues, justo, àquelas horas da noite.

O mundo desabou sobre o jovem que sonhava abafar na Festa do Rosário. Planos e planos foram d’água abaixo. No fulgor da sua alegria, estava certo de que ia encostar o carro com uma bela moça, com a qual estava a flertar. Partiu tão desiludido, que, sequer foi à casa da tia, trocar a roupa pra retornar a casa. Foi assim mesmo como estava vestido: de paletó, gravata, sapatos novos, com algum dinheiro no bolso, que mãe havia lhe dado para rodar nos carrosséis, balançar-se nas canoas e tomar gelada. Assim sendo o ilustre jovem, vestido a rigor, partiu em direção a casa.

O clarão da lua o permitia enxergar o caminho. Mas, o momento da terrível escuridão estava próximo. Era um trecho, de mais ou menos duzentos metros, sem nenhuma iluminação. Ao se aproximar, parou, pôs as mãos nos bolsos, numa pose fotográfica, pensou: o que devo fazer pra atravessar esse pequeno trecho? Já sei, vou correr em alta velocidade de olhos fechados pra não ver nada ao meu redor nem tampouco a minha frente. Assim o fez. Ao observar o trajeto, viu que a escuridão era total. Tudo parecia calmo até demais. Até aí tudo parecia estar muito bem. De repente começa a escutar das aves agourentas, de hábitos noturnos, cantos macabros, a denunciar a sua presença no ambiente. Pensou em retornar a cidade. Mas, refletiu um pouco e decidiu dar continuidade a caminhada, pois, desobedecer à determinação do pai era algo impensável.

Assim, sem alternativas, resolveu enfrentar a zona escura do oiticical. O que mais o confortava era saber que, em campo livre, logo após a travessia, a sua caminhada seria favorecida pelo o clarão da lua. Mas, mesmo assim, os duzentos metros de escuridão pareciam ter a mesma dimensão da caminhada, a que havia de fazer, a fim de chegar a sua casa. Então decidiu que a melhor era mesmo atravessar pequeno trajeto de olhos fechados, a correr a toda velocidade.

Tomado pelo medo partiu. Mas, quando chegou ao meio do oiticical ouviu um gemido: huuuuuuuuum! huuuuuuuum!  Abriu os olhos não viu ninguém ao seu redor, muito menos a sua frente. Foi o momento do Deus me acuda. Apressou os passos até que saiu da zona sombreada. Com muito esforço conseguiu ultrapassar o ponto crucial da travessia. Mesmo assim não deixou de escutar os gemidos que pareciam lhe acompanhar a curta distância. 

Não olhou mais pra trás. Embora os sapatos novos estivessem a calejar os pés, não foi possível diminuir a velocidade da caminhada, pois estava a poucos minutos da sua casa. Na primeira cancela, praticamente voou por cima, pois não quis deter-se para retirar as tramelas. Ao se aproximar de casa teve que enfrentar a última cancela. Da mesma forma passou por cima como o fizera com as demais.

A poucos metros de casa chamou pela Mãe: Mamãe! Mamãe! Emilia apareceu no alpendre com uma lamparina na mão em atendimento ao chamado do filho em estado de aflição. O que aconteceu meu filho? À esta hora você está voltando pra casa, sozinho em meio a toda essa escuridão? O que foi que lhe aconteceu? Perguntou a mãe.

Agú cansado, apenas gesticulava com as mãos querendo dizer alguma coisa a mãe, que não entendia nada. Mas, o amor de mãe, sempre fala mais alto nesses momentos de desespero. Calma meu filho! Entre tome um copo d’água com açúcar, descanse e vamos conversar. Agú refeito do susto começou a conversar: Mamãe, a festa está muito boa, mas, papai estragou tudo. Como então? Perguntou Emilia. Foi assim mamãe: eu estava na frente da Igreja do Rosário a conversar com amigos e amigas, quando papai apareceu.  Acredite mamãe, fiquei morto de vergonha, pois, papai me perguntou se eu havia tomado emprestado o meu uniforme. Tá vendo o que ele fez comigo?

Meu filho por que você não disse a ele que a roupa fui eu que lhe dei? Foi isso que falei mamãe! Tem mais ele disse, na frente de todo mundo, que, quando chegasse   aqui em casa, a senhora tinha que explicar de onde tirou o dinheiro pra comprar a minha roupa.

O pior de tudo isso Mamãe foi ter que enfrentar aquele lugar de almas penadas, que é o riacho do Zé Rodrigues. Foi tanto gemido que não vou esquecer mais nunca. Teve mais Mamãe: ele disse que eu tinha que vir pra poder demonstrar que sou um homem corajoso, quando ele sequer tem coragem de passar nas oiticicas neste horário o qual fui obrigado a passar.

Veja só, quanta humilhação, de paletó, gravata e sapato novo tive que pular todas as cancelas, até aqui em casa. Pra completar, ele me disse, na frente de todo mundo, que a senhora pra poder comprar meu uniforme, tirou o dinheiro dele que está guardado naquele baú, escondido lá no armazém. Ele falou isso mesmo meu filho? Perguntou Emilia. Ta bem meu filho vá dormir que a noite é longa. Durma em paz com Deus, pois, amanhã a gente conversará mais.

Agú me falou que a mãe tirou de baixo da cama um rifle, limpou, carregou, pôs a espreguiçadeiras em frente a porta de entrada e ficou a esperar o retorno do marido. Esaú retorna a casa com o sol já alto e ao abrir a porta depara-se com a esposa com o terço na mão, sentada na espreguiçadeira a sua espera.

Ao adentrar a casa falou: ou você acordou cedo ou então passou a noite acordada a me esperar, não foi? Respondeu Emilia: isso mesmo, estou a lhe esperar pra  pedir uma explicação sobre o modo mal educado, humilhante e desumano com o qual você tratou o nosso filho. Ao levantar-se pegou o rifle, manejou, deixou a ponto de tiro e se afastou um pouco do marido.

Esaú de olhar estupefato, não acreditou naquilo que estava a ver. Emilia falou: não demore, explique-me porque você falou pra o nosso filho que eu havia roubado o seu dinheiro! Calma Emilia! Calma! Vamos sentar e conversar. Ao ouvir o barulho, a récua de filhos acorda e se põe ao redor da mãe. Esaú sentiu-se sozinho. Pediu a mulher que baixasse o rifle para que  pudessem conversar a sós no quarto do casal.

Esaú sabia a mulher que tinha, pois, em 1926 quando Coluna Prestes passou em Coremas, alguns membros da Coluna ameaçaram saquear o armazém da família. Emilia os recebeu com o rifle nas mãos. Foi baleada no braço, mas um major superior a socorreu e pediu respeito a uma mulher corajosa. Este episodio esta registrado no livro de Agu.

Os dois se trancaram no quarto, segundo Agú a conversa foi de conciliação e de pedido de desculpas por parte do seu pai, em razão dos excessos cometidos. Falou-me ainda que a partir desse dia, Esaú passou a ser outra pessoa. Depois desse acontecimento, sempre que havia festa, ele mesmo se encarregava de providenciar as roupas dos filhos.

A paz retorna ao lar dos Rodrigues de Alencar, graças a coragem e determinação de Emília. Tem mais, a partir desse episódio Esaú passou a tratar Emilia com mais carinho e respeito. Nada melhor do que uma esposa valente e corajosa, que no momento oportuno é capaz de resolver, ao seu modo, os contenciosos domésticos de caráter “machista”. Que tal?

João Pessoa, 14 de Novembro de 2012

*Economista e escritor pombalense. 
OITICICAS DO ZÉ RODRIGUES: O TERROR DE AGÚ OITICICAS DO ZÉ RODRIGUES: O TERROR DE AGÚ Reviewed by Clemildo Brunet on 11/13/2012 10:01:00 PM Rating: 5

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