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CAMBOA: OS BIJUS DE JUQUINHA

Ignácio Tavares

Ignácio Tavares*

A primeira casa de farinha que conheci pertencia a minha avó. Embora, há muito tempo paralisada, os equipamentos estavam aptos para desmanchar a mandioca como parte do processo produtivo da farinha. A desmancha era um processo rústico artesanal remanescente dos tempos coloniais. O processo foi passado de geração pra geração até
o fim da terceira década do século passado.

Os instrumentos de produção eram rústicos. A roda, que atuava como força motora, era envolvida por uma correia de couro que fazia movimentar um cilindro dentado, o caititu, cuja função era triturar a batata da mandioca. Feito isso a massa puba era posta numa prensa para a redução do índice de umidade. Em seguida levava-se ao forno para ser transformada em farinha, entre outros derivados.

Da prensa saia uma água ácida, conhecida como manipueira. De gosto amargo, por isso intolerável  para o consumo  humano ou animal. Devido o alto teor de acidez era considerada letal, para qualquer animal que ousasse bebê-la. Seria morte instantânea. Assim sendo, todo rebotalho liquido extraído da mandioca era posto em lugar seguro para evitar o envenenamento dos animais que circulavam pelas proximidades.

Apesar de ter conhecido apenas duas casas de farinha na minha infância, era rara propriedade que não tivesse a suas engenhocas de fabricar farináceos e rapaduras, produtos indispensáveis nos repastos diários das famílias do sertão paraibano. Essas atividades resistem aos dias de hoje, porem, movidas a novos processos produtivos de base mecanizada. No sertão são poucas as unidades em funcionamento.

O modo rústico de processar a mandioca para produção de farinha, assim como cana de açúcar, remonta o período colonial.  Portugal proibiu suas colônias de usar equipamentos modernos de produção de mercadorias para não competir com a Inglaterra, a exceção em alguns estados do nordeste dominados pelo potentado Holandês, que durou algumas décadas do século XVII.

Portugal devia muito a Inglaterra quando da sua separação do julgo Espanhol. Com certeza tinha que retribuir com algumas gentilezas como preito de gratidão. Assim sendo, segundo o saudoso professor Celso Furtado, na sua mais importante obra, Formação econômica do Brasil, em 1704, salvo engano, Portugal assinou o famigerado Tratado de Mithuen.

A partir daí a Nação  Lusitana se comprometia não deixar instalar em suas colônias, entre as quais o Brasil, Institutos, Universidades, até as oficinas onde os curiosos pudessem produzir equipamentos similares aos produzidos pela poderosa rainha de todos os mares. Por conseguinte, o Brasil perdeu o bonde da revolução industrial e só veio a criar a sua primeira universidade muito tempo depois da sua independência.

Ora, o que tem a casa de farinha de Juquinha com isso? Com certeza muito a ver. Vejam só: assim como acontecia na Inglaterra do século XVI até meados do  século XVII, as famílias eram autossuficientes na produção  das suas necessidades de consumo.
Dessa forma, tudo se produzia em casa, do tecido a farinha de trigo para fabricação de pães e bolos. No sertão as coisas não eram diferentes. Os velhos e antiquados teares de madeira permitam a fabricação de tecidos rústicos que serviam para produzir redes, mantas, toalias, sacarias até mesmo alguns vestuários.

Assim como no sitio da minha avó, a casa de farinha de Juquinha era uma empresa familiar, que produzia farinha para abastecer a família no decorrer do ano e o restante era posto no mercado, a fim de fazer dinheiro para comprar as mercadorias que não podia produzir na sua propriedade.

Sempre acompanhava o meu Pai quando havia desmancha ou farinhada na Cambôa. Era uma festa e tanto. Descascar as batatas ou mandiocas era tarefa das mulheres. Os homens faziam a lavagem e depois levava pra esmagamento no caititu. Mané Grande era quem mexia a farinha no forno que era aquecido com lenha, até atingir aquele ponto ótimo ideal para torrar a farinha. Neste momento, ele sabia dizer quando e como a farinha era retirada para esfriamento e depois  acondicionada em sacos.

Uma parte da mandioca era transformada em polvilho ou goma.  Esse produto tinha outros usos alternativos na culinária local, portanto a procura era grande. O polvilho não ia ao forno. Era exposto ao sol para secagem depois armazenado em sacos especiais. Em meio a toda movimentação, o que mais me interessava  eram  os bijus.
O meu Pai, o senhor José Tavares, adorava as farinhadas de Juquinha. A animação era demais. Antes de retornarmos pra casa, Juquinha mandava preparar um ou mais bijus ao seu gosto para nos presentear. Feito isso, entregava a Mané Grande, para que fosse assado em fogo brando.

Era algo extraordinário os bijus da Camboa  Recheados com coco entre outros temperos de gosto agradáveis. Mãe guardava em lugar adequado para evitar ataque dos ratos. No café do dia os bijus de Juquinha estavam presentes no nosso primeiro repasto da manhã. Acabaram-se tudo. Não resta sequer um pé de mandioca que faça lembrar aqueles tempos. O progresso inovou o processo produtivo da fabricação de farinha, por isso, aposentou os velhos equipamentos manuais que foram de tanta serventia para as gerações passadas.

O pior é que o poder público jamais, em tempo algum, preocupou-se em preservar aqueles instrumentos de trabalhos, para que as gerações presentes e futuras possam entender como era o perfil da cultura artesanal/industrial dos nossos antepassados. Em qualquer tempo, em qualquer lugar, o homem sempre foi pródigo na criação dos seus instrumentos de trabalho. Mas, foram pródigos também em abandoná-los em nome das facilidades encontradas para produzir novas mercadorias com novos equipamentos com maior capacidade de produzir no menor espaço de tempo.

É verdade que a mandioca perdeu espaço para o algodão, mas, sofreu muito mais em razão da concorrência da mandioca produzidas n’outras regiões cuja produtividade era seis vezes maior. Dessa forma não havia como concorrer diante de tão desvantajosa diferença de produtividade.

De certa forma valeu, pois, guardo boas lembranças daquele tempo em que o homem era menos egoísta. Com certeza era mais solidário, pois quando ocorria uma desmancha todos participantes recebiam uma parte da produção, não porque tenha participado do processo, mas porque era costume daquela época. Ah, que saudades eu sinto...
João Pessoa, 02 de Dezembro de 2012.

*Economista e escritor pombalense
CAMBOA: OS BIJUS DE JUQUINHA CAMBOA: OS BIJUS DE JUQUINHA Reviewed by Clemildo Brunet on 12/01/2012 10:54:00 PM Rating: 5

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