Memórias de um ex-pesquisador
Ignácio Tavares |
Ignácio
Tavares*
Trabalhar, dormir, faz
bem ao corpo e a alma, não é? Os especialistas em terapia do sono recomendam uma
boa noite, confortavelmente bem dormida, para que se tenha um dia agradável,
sobretudo produtivo, em qualquer atividade que se exerça. É verdade, pois, constatei
isso na prática.
Iniciei a vida profissional
como especialista em planejamento e pesquisa, segundo os rigores do método. Foi
esta atividade a qual escolhi para o exercício da minha profissão. Assim sendo,
as relações de produção do campo foi o meu principal objeto de estudo. Dessa
forma, o insumo básico para a elaboração dos relatórios eram os dados colhidos
de forma direta no ambiente rural.
Com efeito, não havia
como evitar a minha constante presença no campo na busca de informações. Trabalhei
nos estados da Bahia, Ceará e
Paraíba. Era o tipo de trabalho que me fazia
sentir em casa, posto que a vida de campo sempre me fascinou desde a minha mais
tenra idade.
Mas, há de se ressaltar
que o trabalho de campo em termos de bem-estar, deixa muito a desejar.
Reclamações nenhuma, pois quem exerce a atividade de pesquisa no campo, de
antemão já sabe que será submetido a todo sorte de provações dadas às situações
adversas que haverá de enfrentar.
É isso mesmo, quem
trabalha no campo, por antecipação já sabe que há horas certas pra começar, no
entanto não há tempo marcado pra terminar. Os dias são curtos, bem como as
noites, por isso, nos sobra pouco tempo pra dormir. Resultado: sono reprimido
associado a jornadas de trabalhos estafantes nos leva ao limite da tolerância
física e mental, por consequência somos tomados pelo cansaço, entre outros
incômodos.
São inúmeros os
desafios quando se trabalha na condução de pesquisas do gênero em questão. A
felicidade é que o tempo passa rápido. A
recompensa são os conhecimentos acumulados sobre determinada realidade, cujas
conclusões servem de base para a elaboração de políticas públicas direcionadas a
solução dos problemas do homem do campo.
Repito: vivi com
certa frequência, essa situação nos Estados da Paraíba, Bahia e Ceará. Em 1972 quando
estava a concluir o Mestrado na Escola de Agronomia de Fortaleza, fui designado
para coordenar uma pesquisa com a finalidade de colher informações junto aos
produtores rurais do estado do Ceará com o objetivo de avaliar o desempenho
econômico do setor agropecuário.
Para pôr em prática a
pesquisa, o ponto de partida foi a seleção dos municípios mais representativos
na formação do valor do produto interno bruto do setor agropecuário. Tinha sob
o meu comando 25 estagiários, todos matriculados no curso de agronomia, criteriosamente
selecionados, com missão de aplicar cerca de três mil e quinhentos
questionários no prazo máximo de dois meses e meio. Seja, tínhamos metade do
mês de dezembro e os meses de janeiro e fevereiro.
Foi estimado que cada
estagiário aplicaria apenas um questionário nos primeiros dias, em razão do
volume de informações a coletar por cada unidade de produção agrícola visitada.
Com o tempo essa média passaria de um para pouco mais de dois, o que seria necessário
para atingir a meta dos dois meses e meio para concluir os trabalhos.
Sem dúvida, como
frisei, tratava-se de um trabalho cansativo, postos que, pelas minhas mãos
haviam de passar todos os questionários devidamente preenchidos, a fim de
corrigi-los em tempo hábil para evitar atraso na seqüência dos trabalhos. A
corrente não podia ser interrompida, sob a pena de provocar atrasos na
elaboração dos relatórios. Tudo bem. Conscientes
de tudo isso, iniciamos os trabalhos de coleta na região do Cariri do Estado.
Elegemos o município de Missão Velha para a instalação da nossa base de
trabalho, posto que, no seu entorno localizavam os municípios mais importantes
da região, tais como, Barbalha, Crato e Juazeiro.
Ocupamos uma sala no
escritório da Emater-Ce, onde uma Assistente Social nos informou sobre os
hábitos e costumes da população rural a fim de que pudéssemos melhor entender a
cultura e religiosidade da região para facilitar a comunicação entre
entrevistados e apontadores, no ato da aplicação dos questionários. Recebemos uma cópia
do mapa dos municípios da região a fim de conhecermos os caminhos vicinais para
melhor deslocamento dos entrevistadores. Resolvida essas questões no dia
seguinte iniciamos os trabalhos.
Nos dez primeiros
dias já sentia o peso das noites más dormidas. Conseqüência: produtividade dos
trabalhos em queda. A causa maior de tudo isso foi infestação de muriçocas no
ambiente onde dormia, que, associada ao excesso de questionários pra corrigir,
com certeza, levaram-me a dormir poucas horas no decorrer da noite.
Para reduzir o peso
das tarefas de correções de questionários selecionei duas estagiárias pelo
critério de eficiência. Foi uma ajuda e tanto, pois fiquei menos assoberbado
pelo excesso de trabalho. Essa folga me permitiu acompanhar alguns
entrevistadores que apresentaram sérios problemas de rendimentos na aplicação
dos questionários. Foi constatado que o problema era o excesso de conversa
sobre assuntos extra-questionários.
Apesar do reforço com
o deslocamento de duas estagiárias para me ajudar nas correções dos questionários,
o meu corpo apresentou sinais de cansaço. O corpo exausto pedia um tempozinho
para descanso. Mesmo com a ajuda das
estagiárias, a situação complicava-se. Durante o dia a coordenação dos
trabalhos, à noite correção dos questionários e na hora de dormir o sofrimento
com calor e mosquitos. Não dava mais pra suportar as noites pessimamente dormidas,
pois no dia seguinte não havia como esconder os manifestações de cansaço.
Por outro lado, não
havia como reduzir o ritmo dos trabalhos. Quanto aos mosquitos a solução foi
procurar nos municípios vizinhos um melhor dormitório onde pudesse evitá-los.
Fui pra um hotel em Juazeiro. Que bom, foi um céu de felicidade, pois o
ambiente era confortável, sem mosquitos, ademais, com ar condicionado. O meu
exausto corpo agradeceu, por conseguinte a produtividade aumentou. Depois de vinte dias
de trabalhos intensos, com muita correria, concluímos a primeira etapa no Cariri.
Marchamos em direção ao Sertão Central. Ficamos na cidade de Cedro, porque
reunia os melhores fatores locacionais. Era isso que a gente pensava.
Na noite que
cheguemos, todos estavam cansados, pois havíamos concluídos os trabalhos da
primeira etapa depois de intensas jornadas estafantes. O cansaço era visível no
rosto dos vinte e cinco estagiários, inclusive no rosto do coordenador.
Queríamos uma boa cama e nada mais. Todos se acomodaram,
tomaram banho e fomos jantar. Em frente ao hotel havia uma praça onde fomos nos
refestelar um pouco, pois o calor estava demais. Falei pra o grupo que iria
dormir cedo para que pudesse descansar um pouco mais, pois, no outro dia a luta
recomeçaria porque já havíamos adquirido, por antecipação, as informações
necessárias sobre a área.
Pedi a dona do hotel
que reservasse um quarto somente para mim. Assim foi feito. Antes de começar o
Jornal Nacional fui dormir o sono dos justos. Esta foi a pior noite de toda
minha vida. Por volta de meia noite e meia acordei como se estivesse com febre.
Nada disso, era uma praga de muriçoca que nunca havia visto desde que tenho
consciência que de sou gente.
Era uma coisa
assustadora, pois parecia uma cena de filme de terror, do tipo “ataque dos
mosquitos famélicos”. Não dormi mais. Perguntei ao porteiro se havia repelente
no hotel, nada. E agora Ignácio? Mirei a praça e pensei: é ali que vou dormir.
Havia um vigia e perguntei-lhe: se me deitar neste banco aqui o senhor me dá
segurança? Ele ficou sem jeito, falou qualquer coisa que não entendi.
Acrescentei: eu lhe pago. O Cara animou-se. Tudo deu certo depois da oferta. Dessa forma retornei
ao quarto do hotel peguei um travesseiro, forrei a cabeça, acordei ao amanhecer
por volta de cinco e meia da manhã. Foi um sono e tanto, apenas senti algumas
dores na região lombar por conta do desconforto que a cama improvisada me
proporcionou.
Volto ao hotel,
banhei-me, retorno a praça e fico a esperar que o pessoal acorde para tomarmos
café e depois partir pra luta. Quando falei pra o pessoal que havia dormido na
praça por conta das muriçocas, todos reclamaram dos bichinhos, só que nenhum
teve a coragem de dormir num banco de praça.
O certo é que na noite
seguinte fui dormir em Iguatu. Um pouco longe, mas, valeu o sacrifício, mesmo a
pagar mais caro por uma boa noite de sono. Demoramos poucos dias na cidade de
Cedro, pois teríamos que aplicar questionários nas principais cidades do Vale
do Jaguaribe e depois seguirmos para o sertão de Quixadá.
A esta altura já
sabíamos o dia exato em que terminaríamos os trabalhos, depois de quase dois
estafantes meses de campo. O cronograma foi cumprido com certa folga, a ponto
de permitir que alguns estagiários fizessem viagens rápidas a fim de rever os
familiares. Quase todos usufruíram desse beneficio, menos eu.
Ao chegarmos a
Quixadá montamos o nosso escritório na Emater-ce local. Os serviços de
hotelaria nos ofereciam opções o que nos permitiu escolher o melhor lugar para
ficarmos. O pessoal com o tempo e experiência tornou-se mais ágil na aplicação
dos questionários.
A essa altura já
havíamos aplicado mais de 95% dos questionários. A próxima e última etapa era o
município de Itapagé localizado na encosta da serra do Araripe. Assim sendo,
distribui os estagiários nos municípios de Quixadá, Quixeramubim e adjacências
e em pouco tempo aplicamos todos os questionários selecionados pra região.
Enfim chegamos a
Fortaleza. Alguns dias de descanso para depois partirmos para o município de
Itapagé. Como restavam poucos questionários levei as três melhores estagiárias,
dispensando os demais. Neste município concluímos o nosso trabalho de campo.
Retornamos a Escoa de
Agronomia a fim de fazermos a última revisão geral condição necessária para dar
início a fase de processamento das informações colhidas no campo, no velho
computador geração 1130, alimentado por cartões. Essa fase demorou um pouco
mais de um mês. Foi oportuno para um merecido descanso, pois, logo
imediatamente iniciamos a fase de apuração dos dados.
Os dados apurados
permitiam a elaboração de vários relatórios em áreas diversas. Coube a mim,
trabalhar com a questão Comercialização de Algodão no Estado do Ceará. Foi com
este documento que conclui o Mestrado de Economia Rural no primeiro trimestre
de 1973.
Justo em um ano e
seis meses paguei todos os créditos do curso e seis meses depois defendi a
monografia, conforme compromisso assumido com a UFPB, Instituição esta, a qual
estava vinculado como professor, a disposição no departamento de economia da Faculdade
de Ciências Econômicas. Foi assim que tudo começou. Foi a partir deste trabalho
que amadureci pra vida de campo. O resto já falei em textos anteriores...
João
Pessoa, 31 de Agosto de 2013
*Economista e
Escritor pombalense
Memórias de um ex-pesquisador
Reviewed by Clemildo Brunet
on
8/31/2013 10:31:00 AM
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