NO TEMPO DAS LOUCEIRAS
Capítulo
I
Ignácio Tavares |
Ignácio
Tavares*
A
Rua da Cruz era como se fosse uma extensão da Rua do Comércio. Era impossível
não haver uma convivência harmoniosa entre as duas comunidades. Conheci palmo a
palmo a república da Rua da Cruz. Convivi com os mais velhos, assim como os mais
jovens, que faziam parte do meu círculo de amizade.
Lembro-me de Bodinho e Sá Raquel, que
carinhosamente me chamavam Naná. Bodinho sempre visitava as pessoas com as
quais tinha boas relações de amizade. Lá em casa não fazia falta. Sentava-se
com meu pai num banco postado à frente da casa, proseava e
contava boas estórias, a avaliar pelas
gargalhadas do meu pai.
Sá
Raquel também circulava lá por casa para um dedo de prosa com minha Mãe e às
vezes na busca de uma colher de café ou uma pitada de fumo de rolo para fazer
cigarro de palha. Ela também rezava para espantar maus olhados, curar sarnas,
doenças dos olhos, entre outros males comezinhos típicas daquela época. Eu
adorava os dois, Bodinho e Sá Raquel.
Por trás da minha casa morava Joaquim a
Cavalo. Que nome estranho, não é? Tinha uma roça onde plantava milho, feijão,
melancia, jerimum, entre outras culturas de subsistências. Pasmem, meus
senhores, a roça de Joaquim a Cavalo ficava onde hoje é o hospital Sinhá
Carneiro. O velho Joaquim tinha cara de poucos amigos. Eu mesmo o temia porque,
enquanto criança tinha medo do saco que ele sempre estava a conduzir a tiracolo,
sem explicar pra que servia.
Era
voz corrente no meio da meninada que o velho Joaquim escondia no saco qualquer
menino que ousasse roubar suas melancias. Ele só tinha uma filha, sendo esta portadora
de um pequeno aleijão facial, conhecida por deformação labial leporina, e por
esta razão a apelidávamos de Maria três beiços. Por conta desse apelido, Maria
era cismada com a molecada da Rua do Comércio e adjacências.
Se
a gente olhasse pra ela e manifestasse um simples ar de riso, de imediato,
impropérios, entre outros palavrões tomavam conta do ambiente. Era boa
atiradora de pedras, logo, nesses momentos, não havia saída, tínhamos que
correr em ziguezague para nos livrarmos de uma saraivada de pedras certeiras
que vinham em nossa direção. Vez por outra procurávamos fazer amizade com Maria.
Não dava, era tempo perdido, pois costumava dizer que a meninada da rua do
comércio nenhum prestava. Tinha lá suas razões.
Mais
acima, lá pras bandas do cachimbo eterno, comunidade situada nas franjas da rua
da cruz, morava uma senhora que metia medo a todo mundo. Não pela valentia,
mas, pela força da sua língua. Quando alguém a desafiava, em simples discussão,
o ambiente era tomado por impropérios que extrapolavam os limites do tolerável.
Refiro-me a Rosa de Ernesto. Infeliz daquele que entrasse na linha de alcance
da sua maldita língua.
Conta-se que certa vez alguém pôs uma bola,
qual seja, um pedaço de carne envenenada, a fim de matar a sua cachorra de
estimação. O pobre animal não suportando o efeito letal da carne envenenada
entrou em óbito. Rosa não acreditou no que estava a ver, pois sua cachorra era
tratada como se fosse uma filha.
Pôs a
cachorra nos braços e desfilou pela rua da rodagem a rogar pragas direcionadas
aos possíveis assassinos do seu animal de estimação. Aos gritos falava: se for
um homem vai morrer com um câncer no boga. Se for uma mulher vai morrer com um
filho atravessado no xibiu. Digo mais, nem Maloura consegue tirar a criança
entalada. Quem viver vera!
Diante
de tanto praguejamento um grupo de jovens adolescentes reclamou e pediu a Rosa
que acabasse com aquele espetáculo, porque ali só tinha moças de família que
não estavam a fim de escutar tantos palavrões. Rosa põe a cachorra no chão, pôs
as mãos na cintura, de dedo em riste deu o troco às jovens puritanas. Assim
falou: vocês estão vendo esta cachorra aqui sem vida? Pois é, ela mais pura do
que certas moças que moram aqui nesta rua e redondezas.
As jovens, assombradas com a resposta,
retiraram-se em desabada. Rosa continuou a deitar falação sobre as boas
qualidades da sua cachorra. Ninguém ficou pra testemunhar o fim do seu
discurso.
Ao terminar
o desabafo deu continuidade à sua caminhada com a cachorra nos braços, a
percorrer rua acima, rua abaixo, rogando as mesmas pragas, mas ninguém ousou
reclamar. Essa foi a Rosa de Ernesto que reinou por muito tempo nas comunidades
do cachimbo eterno e rua da rodagem, hoje, Domingos Medeiros.
Na
Rua da Cruz residiam pessoas dedicadas ao trabalho, aos afazeres do dia-a-dia.
Tive e ainda tenho bons amigos que outrora fizeram parte dessa comunidade.
Sempre que podia participava da rotina do dia-a-dia dos habitantes daquela
localidade.
Gostava
de frequentar a casa de Delmira, Mãe de leite do meu pai, de lá me deslocava à
casa de Duca, cujo filho Zé ainda hoje é um grande amigo, a casa de Zé Bezerra,
pra conversar com o saudoso Miquila, a casa de Lica, pra falar com o saudoso
amigo Barroso e tantas outras residências.
Mas,
havia algo mais que me chamava atenção. Era a labuta diária das mulheres
louceiras que manipulavam o barro na fabricação de utensílios domésticos. Era
assim que elas faziam dinheiro para mantença da família. Muitas vezes era o
principal ganha-pão de uma família inteira.
Ficava
pasmo ao ver como aquelas criaturas trabalhavam a argila a fim de transformá-la
em verdadeiras obras de arte, tais como, potes, jarras, tigelas, pratos, entre
outras utilidades domésticas de grande aceitação naquela época. No próximo capítulo vou tentar reconstituir
esse momento, à luz do contexto socioeconômico vigente naquela época. Até lá.
João
Pessoa, 06 de Fevereiro de 2014.
*Economista e Escritor Pombalense.
NO TEMPO DAS LOUCEIRAS
Reviewed by Clemildo Brunet
on
2/05/2014 05:56:00 PM
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