SÍTIO RIACHO SECO: QUEM TE VIU NÃO QUER TE VÊ.
Num instante de saudade reabri o
baú das reminiscências e num relance trouxe a tona fatos antigos, ainda
evidentes na memória. De forma imaginária retroagi no tempo e percorri os
caminhos do Sítio Riacho Seco, veredas que pisei no passado e que hoje não são
as mesmas.
Mesmo tendo nascido e vivido na cidade,
sempre mantive fortes relações com a zona rural. Na infância e adolescência
costumava visitar a passeio a residência de parentes mais próximos - tios e
primos – nos Sítios Pedra Branca já relatada e Riacho Seco, sobre o qual, ora
me reporto. A visita estabelecia grande ligação com o lugar e as pessoas. Há, entre
nós, grande afinidade, já que nelas estão fincadas minhas raízes e
seus
caminhos serviram de palco para memoráveis passeios e inesquecíveis travessuras.
Ressalte-se que o Sítio Riacho Seco, era uma modesta
propriedade rural ao norte de Pombal e pertencente ao casal Marcelino e
Honorina Nunes – minha tia-avó. “Seu Marcelino”, patriarca de uma família
simples e unida, fez desse imóvel seu mundo particular. Ali viveu e criou sete
filhos, conforme os princípios éticos e tradicionais. Em vida, além de
destacadas qualidades morais, deixou evidente sua religiosidade e devoção. Como
católico fervoroso foi ímpar na forma mais pura e simples de viver e amar. Manso
e sereno por natureza, mostrou por convicção, que a brandura é o antídoto mais
eficaz contra os males da discórdia e desunião, por isso, desfrutou de amizade
e respeito de todos.
Quão desagradável foi minha surpresa
ao voltar ao local depois de anos. Já não havia quase nada do que antes
existiu. A partir da estrada de acesso, tudo mudou. O que antes era
terraplenagem, hoje pavimentada, assegura a chegada do progresso. Entre as
mudanças observei com estranheza que nela já não trafegam a Viação Ipalma,
Patoense e Batalhão, que salve engano era uma só, mudando apenas o nome de
fantasia e mantendo o mesmo proprietário.
Os passeios ali se davam
principalmente nas festas juninas e férias escolares. O lugar era um
pequeno-grande universo de felicidade que eu dividia com os primos Nenem, Dudé,
Dadi e Neto, além de Martinha, Olga, Leninha e Rita, sempre sob os excessivos
cuidados de Titia Avani e seu esposo Zé Honório, a quem tínhamos a atenção de
tio. Meninada reunida fazia a “festa” num clima de paz, vez por outra
interrompida com briguinhas de crianças que sempre acabavam em reconciliação.
Afinal, briga em família só dura mesmo entre adultos.
Literalmente presenciei um quadro
inusitado. Perplexo, porém persistente, fiz um rápido retrospecto entre o ontem
e o hoje evidenciando as diferenças. Foi um instante de intensa recordação, defronte
a casa de Titia Avani, meu ponto de apoio - lamentavelmente fechada. Com uma
visão ampla do lugar, vislumbrei um quadro com toques de tristeza, a começar do
curral vazio, porteira escancarada e cercas em ruínas, primeiros sinais de
abandono.
Atônito, observei melancólico o
açude. O reservatório quase secular que foi durante anos fonte de sobrevivência,
riqueza e lazer, hoje, se acha reduzido ao lamaçal, imprópria até para o
consumo dos animais que já não existem. A calamidade é tamanha que não permite
sequer, repetir os banhos e passeios de canoa que outrora desfrutei. E, como se não bastasse, o estado deplorável
do pomar – sitiozinho - junto ao açude, já não oferece os saborosos frutos de
antes.
Nesse mar de devastação, cada
detalhe tinha seu imensurável valor. Até mesmo a estrada defronte a casa, tinha
sua importância, Achava fascinante e espetacular o vai-e-vem de carros,
principalmente caminhões pesados, que subindo e descendo ladeiras íngremes,
numa força descomunal, fazia-se ouvir nitidamente o troca-troca de marchas.
Nesse rebuscar de recordações,
impossível não lembrar as festas juninas, onde a presença de meus pais, ali com
a família, era mais que um dever religioso - um compromisso moral. Na verdade
uma reunião familiar onde se estreitava os laços de amizade que já eram muito fortes
e assim permanecem entre os remanescentes.
Quer fosse São João ou São Pedro, o
santo era reverenciado, segundo os costumes e tradições sertanejas. Em volta da
fogueira ardente havia a queima de fogos. Rojões coloridos iluminavam o céu
estrelado, enquanto Mundinho de Zé Canuto, numa manifestação de fé, tomava meus
pais como padrinhos, celebrando o batismo de fogueira, uma crendice popular de
apadrinhamento num ritual de fortalecimento das amizades. Já outros, na busca
de proteção, felicidade, alegria, dinheiro, sobretudo casamento, faziam as mais
variadas “simpatias”. Os festejos se
completavam com autêntico forró, através das emissoras de rádio Sociedade da
Bahia e Alto Piranhas, ouvidos num rádio ABC, que enfeitava a sala sobre uma
mesa em lugar de destaque e protegido por uma capa bordada com a expressão “A
Voz do Brasil”. Nesse mesmo tempo se degustava canjica, pamonha, bolo, além de milho
assado e outros pratos da rica e saborosa iguaria nordestina, caprichosamente
preparada por minha tia e minha mãe, ambas prendadas na arte de cozinhar. Aí, ante
o irresistível sabor me esbanjava comendo além da conta, como que para
compensar o sacrifício de ter moído dezenas de espigas de milho verde. Assim não
podia deixar por menos.
As lembranças narram fatos marcantes, principalmente
aqueles que devíamos ter evitado. É que o proibido é tentador, irresistível. Mas,
como controlar o comportamento de crianças e adolescentes no vigor da mais
tenra idade? O impulso desmedido confirma o dito popular que assim diz: menino
junto só Deus pode e o diabo de aperreio se sacode.
Assim foi o Riacho Seco, de “Seu
Marcelino”, Zé Honório, Titia Avani e meu, que de forma bem particular serviu
de palco para minhas aventuras, sempre acompanhado dos primos, atores
coadjuvantes deste cenário de “artes” que somente criança é capaz. Na verdade, éramos
“moleques levados”, protagonistas de todo tipo de traquinagem, saudáveis ou
não, fazendo de vítima animais, pessoas e às vezes até nós mesmo. Vez por outra
alguém se tornava o “bobo da corte”. Nesse aspecto, nem Olga foi poupada, vendo
na estrada o aviso: trecho em obras, que leu com empolgação pronunciando: “trecho
em ubras”, tornando-se alvo de gozação mesmo em fase inicial de aprendizagem.
A propósito, mesmo sem habilidade
para o trabalho rural, relembro ter auxiliado na luta diária, tais como: juntar
o gado para a ordenha, transportar capim numa canoa, entregar leite, botar água
e algo mais que se fizesse necessário. O pouco que fiz foi suficiente para
sentir o quanto é árdua a vida no campo. Em contrapartida, relembro com remorso
as judiações com os animais. Na santa inocência achava maravilhoso colocar
cactos do tipo Xique-Xique e mandacaru sob a cauda de asininos, banhar ovelhas
na cacimba, além de provocar João Lemos e Toinho Pereira, dois desajuizados ali
residentes.
Nesse ínterim fui aos extremos. Recordei
com saudade um passado alegre em conflito com um presente melancólico, tempos
entre os quais muito mudou – para pior. Tenho a certeza de que quem te viu,
hoje não quer te vê. Quem te viu outrora alegre, produtivo, aconchegante e
imponente, hoje, não suporta vê-lo envelhecido e abandonado, a mercê do
esquecimento. Literalmente já não existe mais, salvo na lembrança de alguns. Tudo
hoje se reduz a um misto de saudade e tristeza.
Ao Riacho Seco que me recebeu em
festa me proporcionando felicidades, meus agradecimentos. Como tributo, revelo um
sentimento de revolta vê-lo fadado ao desprezo, feito terra de ninguém. Felizes
foram seus anfitriões e protagonistas de sua epopéia que partiram sem assistir o
holocausto de sua desolação.
Enfim, partindo de um princípio otimista
é possível superar dificuldades e mudar a situação. Esse conceito alimenta a
esperança me induzindo a acreditar que em breve, o Riacho Seco, voltará a ser
como antes e que eu possa, com prazer, contar uma nova história.
Pombal, 04 de
fevereiro de 2013.
*Escritor
e Professor
SÍTIO RIACHO SECO: QUEM TE VIU NÃO QUER TE VÊ.
Reviewed by Clemildo Brunet
on
2/05/2014 07:07:00 AM
Rating:
Nenhum comentário
Postar um comentário