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SÍTIO RIACHO SECO: QUEM TE VIU NÃO QUER TE VÊ.

 
Francisco Vieira
Prof. Francisco Vieira*

            Num instante de saudade reabri o baú das reminiscências e num relance trouxe a tona fatos antigos, ainda evidentes na memória. De forma imaginária retroagi no tempo e percorri os caminhos do Sítio Riacho Seco, veredas que pisei no passado e que hoje não são as mesmas.
            Mesmo tendo nascido e vivido na cidade, sempre mantive fortes relações com a zona rural. Na infância e adolescência costumava visitar a passeio a residência de parentes mais próximos - tios e primos – nos Sítios Pedra Branca já relatada e Riacho Seco, sobre o qual, ora me reporto. A visita estabelecia grande ligação com o lugar e as pessoas. Há, entre nós, grande afinidade, já que nelas estão fincadas minhas raízes e
seus caminhos serviram de palco para memoráveis passeios e inesquecíveis travessuras.
           Ressalte-se que o Sítio Riacho Seco, era uma modesta propriedade rural ao norte de Pombal e pertencente ao casal Marcelino e Honorina Nunes – minha tia-avó. “Seu Marcelino”, patriarca de uma família simples e unida, fez desse imóvel seu mundo particular. Ali viveu e criou sete filhos, conforme os princípios éticos e tradicionais. Em vida, além de destacadas qualidades morais, deixou evidente sua religiosidade e devoção. Como católico fervoroso foi ímpar na forma mais pura e simples de viver e amar. Manso e sereno por natureza, mostrou por convicção, que a brandura é o antídoto mais eficaz contra os males da discórdia e desunião, por isso, desfrutou de amizade e respeito de todos.
            Quão desagradável foi minha surpresa ao voltar ao local depois de anos. Já não havia quase nada do que antes existiu. A partir da estrada de acesso, tudo mudou. O que antes era terraplenagem, hoje pavimentada, assegura a chegada do progresso. Entre as mudanças observei com estranheza que nela já não trafegam a Viação Ipalma, Patoense e Batalhão, que salve engano era uma só, mudando apenas o nome de fantasia e mantendo o mesmo proprietário.
            Os passeios ali se davam principalmente nas festas juninas e férias escolares. O lugar era um pequeno-grande universo de felicidade que eu dividia com os primos Nenem, Dudé, Dadi e Neto, além de Martinha, Olga, Leninha e Rita, sempre sob os excessivos cuidados de Titia Avani e seu esposo Zé Honório, a quem tínhamos a atenção de tio. Meninada reunida fazia a “festa” num clima de paz, vez por outra interrompida com briguinhas de crianças que sempre acabavam em reconciliação. Afinal, briga em família só dura mesmo entre adultos.
            Literalmente presenciei um quadro inusitado. Perplexo, porém persistente, fiz um rápido retrospecto entre o ontem e o hoje evidenciando as diferenças. Foi um instante de intensa recordação, defronte a casa de Titia Avani, meu ponto de apoio - lamentavelmente fechada. Com uma visão ampla do lugar, vislumbrei um quadro com toques de tristeza, a começar do curral vazio, porteira escancarada e cercas em ruínas, primeiros sinais de abandono.     
            Atônito, observei melancólico o açude. O reservatório quase secular que foi durante anos fonte de sobrevivência, riqueza e lazer, hoje, se acha reduzido ao lamaçal, imprópria até para o consumo dos animais que já não existem. A calamidade é tamanha que não permite sequer, repetir os banhos e passeios de canoa que outrora desfrutei.  E, como se não bastasse, o estado deplorável do pomar – sitiozinho - junto ao açude, já não oferece os saborosos frutos de antes.
            Nesse mar de devastação, cada detalhe tinha seu imensurável valor. Até mesmo a estrada defronte a casa, tinha sua importância, Achava fascinante e espetacular o vai-e-vem de carros, principalmente caminhões pesados, que subindo e descendo ladeiras íngremes, numa força descomunal, fazia-se ouvir nitidamente o troca-troca de marchas.
            Nesse rebuscar de recordações, impossível não lembrar as festas juninas, onde a presença de meus pais, ali com a família, era mais que um dever religioso - um compromisso moral. Na verdade uma reunião familiar onde se estreitava os laços de amizade que já eram muito fortes e assim permanecem entre os remanescentes.
            Quer fosse São João ou São Pedro, o santo era reverenciado, segundo os costumes e tradições sertanejas. Em volta da fogueira ardente havia a queima de fogos. Rojões coloridos iluminavam o céu estrelado, enquanto Mundinho de Zé Canuto, numa manifestação de fé, tomava meus pais como padrinhos, celebrando o batismo de fogueira, uma crendice popular de apadrinhamento num ritual de fortalecimento das amizades. Já outros, na busca de proteção, felicidade, alegria, dinheiro, sobretudo casamento, faziam as mais variadas “simpatias”.  Os festejos se completavam com autêntico forró, através das emissoras de rádio Sociedade da Bahia e Alto Piranhas, ouvidos num rádio ABC, que enfeitava a sala sobre uma mesa em lugar de destaque e protegido por uma capa bordada com a expressão “A Voz do Brasil”. Nesse mesmo tempo se degustava canjica, pamonha, bolo, além de milho assado e outros pratos da rica e saborosa iguaria nordestina, caprichosamente preparada por minha tia e minha mãe, ambas prendadas na arte de cozinhar. Aí, ante o irresistível sabor me esbanjava comendo além da conta, como que para compensar o sacrifício de ter moído dezenas de espigas de milho verde. Assim não podia deixar por menos.
            As lembranças narram fatos marcantes, principalmente aqueles que devíamos ter evitado. É que o proibido é tentador, irresistível. Mas, como controlar o comportamento de crianças e adolescentes no vigor da mais tenra idade? O impulso desmedido confirma o dito popular que assim diz: menino junto só Deus pode e o diabo de aperreio se sacode.
            Assim foi o Riacho Seco, de “Seu Marcelino”, Zé Honório, Titia Avani e meu, que de forma bem particular serviu de palco para minhas aventuras, sempre acompanhado dos primos, atores coadjuvantes deste cenário de “artes” que somente criança é capaz. Na verdade, éramos “moleques levados”, protagonistas de todo tipo de traquinagem, saudáveis ou não, fazendo de vítima animais, pessoas e às vezes até nós mesmo. Vez por outra alguém se tornava o “bobo da corte”. Nesse aspecto, nem Olga foi poupada, vendo na estrada o aviso: trecho em obras, que leu com empolgação pronunciando: “trecho em ubras”, tornando-se alvo de gozação mesmo em fase inicial de aprendizagem.             
            A propósito, mesmo sem habilidade para o trabalho rural, relembro ter auxiliado na luta diária, tais como: juntar o gado para a ordenha, transportar capim numa canoa, entregar leite, botar água e algo mais que se fizesse necessário. O pouco que fiz foi suficiente para sentir o quanto é árdua a vida no campo. Em contrapartida, relembro com remorso as judiações com os animais. Na santa inocência achava maravilhoso colocar cactos do tipo Xique-Xique e mandacaru sob a cauda de asininos, banhar ovelhas na cacimba, além de provocar João Lemos e Toinho Pereira, dois desajuizados ali residentes.     
            Nesse ínterim fui aos extremos. Recordei com saudade um passado alegre em conflito com um presente melancólico, tempos entre os quais muito mudou – para pior. Tenho a certeza de que quem te viu, hoje não quer te vê. Quem te viu outrora alegre, produtivo, aconchegante e imponente, hoje, não suporta vê-lo envelhecido e abandonado, a mercê do esquecimento. Literalmente já não existe mais, salvo na lembrança de alguns. Tudo hoje se reduz a um misto de saudade e tristeza.
            Ao Riacho Seco que me recebeu em festa me proporcionando felicidades, meus agradecimentos. Como tributo, revelo um sentimento de revolta vê-lo fadado ao desprezo, feito terra de ninguém. Felizes foram seus anfitriões e protagonistas de sua epopéia que partiram sem assistir o holocausto de sua desolação.
            Enfim, partindo de um princípio otimista é possível superar dificuldades e mudar a situação. Esse conceito alimenta a esperança me induzindo a acreditar que em breve, o Riacho Seco, voltará a ser como antes e que eu possa, com prazer, contar uma nova história.


Pombal, 04 de fevereiro de 2013.

*Escritor e Professor

            
SÍTIO RIACHO SECO: QUEM TE VIU NÃO QUER TE VÊ. SÍTIO RIACHO SECO: QUEM TE VIU NÃO QUER TE VÊ. Reviewed by Clemildo Brunet on 2/05/2014 07:07:00 AM Rating: 5

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