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NO TEMPO QUE SE VENDIA CULTURA NO MEIO DA RUA

Ignácio Tavares

Ignácio Tavares*

            Era um sábado qualquer no ano de 1944.  Estava sentado ao lado do meu pai e com o olhar firme, curioso, observava sua conversa animada com seus amigos, que costumeiramente freqüentavam o seu ambiente comercial nos dias de feira. Ouvia muito bem o que eles conversavam, entretanto nada entendia postos que, o meu pensamento estava lá fora bem perto do estabelecimento do meu pai.
          No momento, só pensava no Ceguinho rabequeiro, que estava preste a chegar. O seu horário já se havia vencido, aumentando assim cada vez mais a minha inquietação. Todos os sábados, o artista do povo marcava o seu território no mesmo local, próximo ao armazém do meu pai. Ouvir os improvisos do Ceguinho, sobretudo seus lamentos, ao som da rabeca, era para mim uma diversão e
tanta nos dias de feiras.
      Por isso, estava sempre atento à chegada do bardo improvisador. Quando isso acontecia, avisava ao senhor José Tavares, meu pai, que de pronto autorizava-me levar um tamborete para que o ceguinho melhor se acomodasse. Ali instalado, puxava do saco a rabeca, instruía um rapazola que o acompanhava, responsável pela coleta e dava início ao seu show sabático.
         Com certa frequência iniciava a cantoria lamentando a sua condição de deficiente visual. Era uma estratégia para comover os circunstantes presentes. Não era um bom versejador, mas a sua cantoria dava a entender que a sua vida não era mais sofrida porque Deus lhe dera um primoroso presente que fora o dom da música e da poesia. Por isso seus versos chamavam atenção da plateia constituída por homens simples da zona rural que tinha como diversão, sempre aos sábados, ouvir os improvisos do ceguinho.
       No meio da plateia, estava um menino, magro, arguto observador de tudo que se passava ao redor do ceguinho. Sentia inveja do ceguinho. Cá comigo pensava: gostaria de dedilhar essa rabeca e improvisar versos para o deleite de todos que se fazem presentes aqui neste ambiente. Seria o máximo. Coisas de criança.
       Mas, em meio a tudo isso algo me chamava atenção. O ceguinho sempre repetia as mesmas músicas, às vezes com pequenas variações, para improvisos diferentes. Isso mesmo, percebia a constância do som da rabeca porque sempre tive um ouvido apurado para música. Quando os versos tornavam-se repetitivos, afastava-me e partia para outras aglomerações, entre tantas que existiam nos dias de feira.
       O dia de feira era mesmo uma oportunidade que os repentistas populares tinham para expor e vender suas criações poéticas. É verdade, vendia-se cultura popular do mesmo modo que se vendiam gêneros alimentícios e outros artigos de primeira necessidade. Dessa forma, era comum encontrar vendedores de versos, lendo a toda altura seus cordéis, principalmente, os de títulos mais chamativos.
       Os mais procurados eram: a chegada de Lampião no inferno, o Pavão Misterioso, os Prodígios do Padre Cícero Romão do Juazeiro, entre outros cordéis de apelos religiosos fundamentados em versículos bíblicos de conhecimento público. O povo gostava, por isso dezenas de versejadores invadiam a cidade nos dias sábados para ler e vender os seus versos
     A feira era uma festa. Caminhava no meio do turbilhão em busca de algo que me chamasse atenção. O dinheiro do algodão circulava de mão em mão. Aparecia gente de toda redondeza e até de outros estados, como é o caso dos caririzeiros vindos do sertão oeste do ceará. Dessa gente, muitos terminaram fixando residência em Pombal, motivados pela hospitalidade do nosso povo e as oportunidades que o comércio oferecia.  
   Comerciantes habilidosos originários de outras regiões vendiam uma diversidade de produtos, tais como: artefatos de couros, cordoalhas, peças de ferro, bijuterias folheadas à ouro, condimentos, alhos, cebolas, rosários de coco, cabeça de negro, batata de purga, casca de árvores de reconhecidas propriedades medicinais, macaúba, pequi, tabletes de doce de buriti, rapadura, batida ou rapadura mole, jatobá, mocós, pebas,  preás, arribaçãs, entre outras bugigangas.
    Não tinha a menor noção, porque o homem do povo se interessava tanto pelos livretes de cordéis. Mas, com o passar do tempo percebi que pra eles, os folhetins faziam diversão dos fins de semana na zona rural. Aos domingos reuniam-se no alpendre da casa grande pra escutarem a leitura dos versos de suas preferências.
    Como o índice de analfabetismo na zona rural era expressivo, costumava-se convidar alguém que soubesse ler, com certa desenvoltura, para fazer a leitura e ainda interpretar os versos que lia. Quando o filho ou filha do patrão estava em gozo de férias, era quem desempenhava esse papel.
     Passados algumas dezenas de anos, constata-se que esse tipo de cultura popular está em estado terminal. A industrialização do país, a modernização da mídia, provocou mudanças no comportamento das pessoas, assim como nos hábitos de consumo e de lazer. Esse fenômeno contagiou também as mais recônditas comunidades do interior nordestino.
        Estabeleceram--se novas relações de produção que resultaram na oferta de novos produtos de qualidade refinada e de preços acessíveis, tais como: vestuários, calçadas, utensílios domésticos, alimentos industrializados, rádios a pilhas, Tvs, aparelhos eletroeletrônicos, entre outros. Reafirmo que, tudo isso contribuiu para que ocorressem significativas mudanças no modo de ser e de pensar, no homem do interior.
       A  demais, a urbanização acelerada da população rural adensou cada vez mais o mercado consumidor de novos produtos. Dessa forma, a produção familiar perdeu seus espaços o que resultou no desemprego de diversas categorias de trabalhadores autônomos não assalariados. Entre estes se destacam os alfaiates, sapateiros, tecedeiras, produtoras de artefatos de barros (argila), de guloseimas domésticas e outras coisas mais.
          Escaparam dessa listagem os trabalhadores da atividade de produção de alguns bens de origem animal e vegetal. No caso os derivados de leite e da cana de açúcar. Os queijos, a manteiga, a rapadura, preservaram os seus nichos de mercado. Isso porque a grande indústria de laticínios tem pouco interesse pelos pequenos mercados. No caso da resistência, no tempo e no espaço, da rapadura e assemelhados, justifica-se, por se tratar de um produto especial, destinado às populações de baixa renda.
       Com efeito, os agentes responsáveis pela comercialização das mercadorias produzidas por vários grupos familiares foram também excluídos do mercado (vendedores ambulantes, um caso típico foi o cego Rosendo). Assim sendo, os afeiçoados da cultura popular saíram de circulação, dando lugar ao consumidor assalariado e semi-assalariado urbano, mais exigente e refinado no processo de escolha dos produtos de consumo e de outras utilidades.
         A maioria guia-se pelos encantos da mídia televisiva. Este foi o custo da prosperidade que, com a sua força avassaladora rompeu os laços entre passado e presente e apagou da memória do povo, seus traços culturais mais representativos, acumulados ao longo de séculos e séculos. Tudo mudou e mudou até de mais. Pouco resta daqueles bons tempos. A era digital chegou. O povo não pensa - apenas repete o que vê, ouviu ou o que lê.
          Insisto em acreditar que o resgate da cultura popular necessariamente deva passar pela sala de aula. Quero dizer que, se a questão cultura popular for adotada como disciplina básica, no ensino fundamental e no segundo grau, com certeza a nova geração poderá resgatar a verdadeira cultura popular do seu estado da sua região.
          Caso contrário nada restará, como já disse, a não ser uma vaga lembrança registrada nas monografias ou teses dos doutorandos, que costumam pegar um gancho no assunto, para legitimarem os seus diplomas de conclusão de seus respectivos cursos.
João Pessoa, 26 de Fevereiro de 2015
*Economista e Escritor pombalense
NO TEMPO QUE SE VENDIA CULTURA NO MEIO DA RUA NO TEMPO QUE SE VENDIA CULTURA NO MEIO DA RUA Reviewed by Clemildo Brunet on 2/27/2015 06:35:00 AM Rating: 5

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