Entre dois mundos
Rinaldo Barros |
Rinaldo
Barros*
Já tem um tempinho que ando assuntando
sobre o significado de tudo isso que estamos vivendo. Cogito se não estaríamos
vivendo “entre dois mundos: um definitivamente morto, e outro que luta por vir
à luz”.
Busquei nos mestres do século passado
uma possível fonte para compreender esta charada.
Fixei-me em Macunaíma.
Segundo o seu próprio criador - Mário de
Andrade (1893 a 1945) - Macunaíma representa "a aceitação sem timidez nem
vanglória da entidade nacional", concebida como o retrato cultural do povo
brasileiro: “índio branco, feiticeiro, mau caráter, preguiçoso, mentiroso,
egoísta, gozador, capaz de rir de si próprio e
de nunca perder uma piada”. Terreno
fértil para, frente à impunidade, florescer atos de corrupção, praticados com
naturalidade, sem que sejam vinculados com a questão da Ética ou com a moral
vigente.
Pequenas corrupções cotidianas são
consideradas “defesas”, expressão muito usada por diversos segmentos da
população. Um passo para aceitar a corrupção, a criminalidade, em todos os
níveis.
Macunaíma poderia ser a metáfora de uma
crise, mas também pode ser tomado como um desafio a ser vencido. O povo
brasileiro teria sido formado historicamente de forma a ser capaz de
adaptar-se, no cotidiano, a inúmeras formas de estratégias de sobrevivência
(mentir e roubar são “espertezas” que integram esta cultura).
Capacitou-se a conviver “espertamente”
com situações adversas de exploração, violência, drogas, corrupção, miséria,
preconceitos, desemprego, analfabetismo, utilizando-se de armas ou mecanismos
psicológicos os mais diversos. A arma mais utilizada é o cinismo travestido de
humor. Mentir talvez seja a vice-campeã.
Impontualidade e Hipocrisia disputam
pau-a-pau, visando sempre “levar vantagem em tudo”.
Relembro também que aprendemos com
Gilberto Freire que a família patriarcal determinou toda estrutura social e as
relações com o poder público. Formou-se sociologicamente “uma invasão do
público pelo privado, do Estado pela Família”. O patrimonialismo é visto como
“natural”.
Para complicar ainda mais, nossa cultura
tem como traço definidor sua diversidade e ao mesmo tempo o sincretismo de
várias manifestações antropológicas, principalmente negras, índias e
portuguesas. Assume dimensão gigantesca o problema da mestiçagem do povo
brasileiro.
A mestiçagem é uma não identidade. Somos
todo mundo e não somos ninguém. Darcy Ribeiro, em seu livro “O Povo
Brasileiro”, falou sobre o conceito de “ninguémdade”. Os brasileiros somos
brancos que não são brancos, negros que não são negros, índios que não são
índios.
Essa faceta adaptativa de nossa
complexidade foi comprovada recentemente em pesquisa do IBOPE, cujo resultado
aponta na direção da aceitação generalizada do nepotismo, do patrimonialismo
(invasão do público pelo privado) e da corrupção eleitoral.
A pergunta “Você venderia o seu voto? ”
tem resposta imediata e sem pejo: “Depende do preço que você pagar”. Em cada
eleição, no Brasil, milhões de votos são vendidos.
O Ibope tem pesquisa, não publicada,
reveladora dessa característica nacional: quase 75 por cento dos entrevistados
admite que conviveria com a corrupção, se estivesse em cargo público.
Na base do “fiz porque todo mundo faz”.
Para completar, a urbanização ocorrida
em velocidade vertiginosa nos últimos quarenta anos expulsou milhões de
trabalhadores rurais (caipiras) para os centros urbanos, lançando nas cidades
muito mais gente do que as fábricas conseguiram ocupar. São lúmpens, diria
Marx.
São milhões de pessoas cujo único
compromisso é consigo mesmo, com sua sobrevivência. A vida famélica não lhes
deu oportunidade de perceber que existem princípios éticos universais, menos
ainda que a civilização somente será construída a partir da cidadania.
Resumo da ópera: ainda que o PT
(corrupto) saia do governo, provavelmente, “tudo continuará como dantes no
quartel de Abrantes” ainda durante muito tempo. Até porque essas questões são
estruturais, históricas, sistêmicas, e não serão resolvidas no médio prazo; nem
fácil nem rapidamente.
Por tudo isso, antevejo que, no patropi,
a cidadania - fundada na Ética - somente se fará vida após a geração dos meus
bisnetos. Por enquanto, Macunaíma ainda vive, atua e corrompe.
Como diria Prestes, “esse é o povo que temos”.
Ou seja, vivemos entre dois mundos.
*Rinaldo
Barros é professor – rb@opiniaopolitica.
Entre dois mundos
Reviewed by Clemildo Brunet
on
7/30/2015 05:14:00 AM
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