VALÉRIO: O GARI APAIXONADO
Ignácio Tavares |
Ignácio Tavares*
O serviço de limpeza urbana de Pombal tem lá
suas histórias, principalmente, na época em que a coleta era feita através de carroças puxadas a burros adestrados, para
o exercício da atividade. De tanto cruzarem as ruas da cidade, na tarefa de
coleta de lixo, as burras ficaram famosas, bem como seus condutores.
Era comum alguém ser apelidado de “burra do
lixo” por estar a vagar ao léu sem fazer nada. Eram os famosos “azilados”. Havia
apenas duas carroças coletoras de lixo. Lembro-me bem de seu Luiz, famoso
carroceiro, condutor de uma dessas carroças que diariamente coletava os
resíduos sólidos postos em frente às casas.
Quando alguém, por esquecimento deixava de por
o lixo no lugar certo, seu Luiz adentrava a casa, apanhava-o, mas,
não saia enquanto não fosse agraciado com uma xícara de café acompanhada de um vistoso pão-doce produzido na Padaria Vitória. Pelo menos na minha casa era assim.
não saia enquanto não fosse agraciado com uma xícara de café acompanhada de um vistoso pão-doce produzido na Padaria Vitória. Pelo menos na minha casa era assim.
Ao terminar a coleta, lá por volta das cinco
da tarde, seu Luis, aboletava-se na bodega de Severino Pedro, só saia quando
estava em estado de embriaguês pra lá de alfa. Era o seu passatempo preferido,
seja bebericar umas e outras no intervalo do expediente, bem como no final.
Ao
terminar o momento de lazer etílico, com alguma dificuldade subia até o assento
da carroça e com a língua trôpega, falava alguma coisa que, deveras, somente a
burra entendia e partia em direção a casa. No outro dia estava seu Luiz alegre,
como sempre, a reiniciar prazerosamente, mais uma jornada de trabalho, ademais,
repetir a mesma caminhada, tomar o mesmo porre, na bodega de Severino Pedro.
Assim foi a sua vida, até quando não foi mais
possível dar continuidade ao seu trabalho. O álcool e o contato direto com os
rejeitos sólidos, a que estava a recolher roubaram-lhe a saúde, por
conseqüência a sua vida. Não demorou muito foi nomeado o seu substituo.
Foi a hora e a vez de Valério Bezerra.
Morador da Rua da Cruz, irmão do saudoso Zé Bezerra, que também morava no mesmo
ambiente urbano. O antecessor, seu Luiz, gostava de tomar uma e outras, mas,
Valério não ficava atrás. Assim sendo era chegado a ingestão de umas e outras
nos horários de folga.
Valério era um cidadão elegante no seu modo
de ser. Solteirão de fino trato atendia a todos que o procurasse para o
recolhimento de lixo extra e às vezes para alguns serviços domésticos, sem
cobrar qualquer retribuição financeira. Servia pelo prazer de servir. O povo
gostava de Valério.
Eis que um belo dia conhece Ester. Foi um amor
à primeira vista. Juntaram os trapos foram morar num casebre de taipa na Rua da
Cruz. A partir desse momento, Ester passou a ser sua companheira de todas as
horas, quer na rua, quer em casa nos afazeres domésticos.
Formaram um par perfeito, no amor, na dor e na
cachaça. Valério não trabalhava com ajuda de burros, tal qual seu Luiz. Estava
sempre a conduzir uma carroça, um ciscador, uma pá e uma vassoura. Esses
instrumentos de trabalho eram conduzidos por Ester.
Os dois eram um casal solidário sob todos os
aspectos. Antes do almoço, davam uma paradinha na bodega de Severino Pedro para
tomar um aperitivo, com certeza, para ativar o apetite na hora do almoço. Que
almoço? Um pão carteira dormido, um pedaço de rapadura, acompanhados de um copo
d’água. Descansavam um pouco, logo após, por volta de uma hora da tarde,
reiniciavam os trabalhos.
Percorriam as ruas centrais da cidade a servir
a todos que os procurassem. Mas, o palco para suas diatribes etílicas era a
bodega de Severino Pedro. Depois das cinco, os dois encostavam-se ao balcão e
iniciavam o segundo expediente etílico do dia.
Conversavam e riam com muito estardalhaço. Ninguém
sabia o que eles conversavam tanto, nem tampouco o porquê de tantas
gargalhadas. Boas piadas que estavam a contar? Nada disso, era talvez a alegria
de estarem juntos partilhando o prazer da embriagues. Não havia limites para
encerrar a bebedeira. O expediente terminava quando Ester não suportasse ficar
em pé.
O estado de embriagues de Ester obrigava
Valério retornar ao lar. Eis aí um
problema. Como levar Ester pra casa? Ora, se Ester mal conseguia ficar em pé, a
solução era Valério conduzir a sua amada nos braços, de maneira confortável ou
então conduzi-la na carroça de mão.. Nada disso. Do mesmo modo que conduzia um
saco de lixo nas costas, resolveu, da mesma forma, também conduzir Ester. Neste caso os instrumentos de
trabalho ficavam na bodega pra ser pego no outro dia.
Assim os dois estavam livres pra partirem em
direção a casa. Valério colocou Ester
sobre os ombros, com uma mão segurava o pescoço e com a outra as pernas. Era
uma coisa esquisita, pois, Ester não usava roupas internas. As partes íntimas
ficaram semi-expostas o que atraiu uma
leva de meninos curiosos acompanhar a caminhada de Valério.
Ninguém duvidava da paixão de Valério por
Ester. Os dois caminhavam de mãos dadas pelas ruas da cidade nos raros momentos
de sobriedade. De onde Ester veio, não sei, mas tenho certeza de que, enquanto
os dois viveram, o amor puro e verdadeiro habitou seus corações. Era de fazer
inveja aos casais que viviam na opulência do ter, mas, intimamente divididos
por conta dos maus eflúvios do desamor.
Não sei como terminou essa bela história de
amor vivida por dois seres humanos sem visibilidade social. Afastei-me de
Pombal, perdi o contato com Valério. Pouco tempo depois soube que os dois
haviam falecidos. Quem sabe, talvez tenham firmados um pacto de amor eterno,
fator este que os fizeram partir em pouco espaço de tempo de um para o outro.
Não tenho certeza, não sei, apenas suponho.
João Pessoa, 14 de Agosto de 2012
*Economista e escritor pombalense.
VALÉRIO: O GARI APAIXONADO
Reviewed by Clemildo Brunet
on
8/14/2012 05:40:00 AM
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