FÉRIAS NA PEDRA BRANCA
Francisco Vieira |
Por
Francisco Vieira*
Viajando em pensamento, vez
por outra, penetro no túnel do tempo e trago à tona recordações que me fazem
criança outra vez. É que o passado, hoje e amanhã, será sempre presente. O
ontem, por mais longínquo que seja não deixará de fazer parte de nossas vidas.
Assim, boas e más lembranças, irão sempre nos acompanhar. Entre as
reminiscências – que são muitas – permanecem vivas na memória as férias no
Sítio Pedra Branca.
Pedra Branca, nome de
localidade rural ao norte do município de Pombal e
berço da Família Vieira. Propriedade pertencente ao casal “Ioiô” Vieira e Salomé - meus avós paternos - patriarcas de uma família composta de nove filhos, criados na labuta diária, com dignidade, fartura e convivência harmônica. Seu “Ioiô”, embora não ostentasse grandes riquezas, mostrava-se bem aquinhoado, pois detinha valioso patrimônio. Era um homem simples, pacato e, sobretudo, honesto. Sua palavra uma vez empenhada era uma garantia, pois valia mais que qualquer documento. Suas qualidades faziam jus ao respeito de todos.
berço da Família Vieira. Propriedade pertencente ao casal “Ioiô” Vieira e Salomé - meus avós paternos - patriarcas de uma família composta de nove filhos, criados na labuta diária, com dignidade, fartura e convivência harmônica. Seu “Ioiô”, embora não ostentasse grandes riquezas, mostrava-se bem aquinhoado, pois detinha valioso patrimônio. Era um homem simples, pacato e, sobretudo, honesto. Sua palavra uma vez empenhada era uma garantia, pois valia mais que qualquer documento. Suas qualidades faziam jus ao respeito de todos.
Passar dias ali, rever tios
e primos era mais que uma diversão, significava o prêmio pelo sucesso no ano
letivo. Reprovação nem pensar, pois me custaria à privação das brincadeiras,
castigo comparado a uma prisão domiciliar, por isso tudo era válido. Afinal,
por uma boa recompensa muita coisa é possível.
Depois de planejar o ano
inteiro, enfim, o grande dia. Num sábado, após a feira semanal, sob os cuidados
de Neco, tio paterno mais velho, eu partia para a “Terra Prometida”. O percurso
de aproximadamente 20 km de estrada não pavimentada se dava no caminhão
Chevrolet de Zé Calisto – fazendeiro rico do lugar – que guiado com perícia por
“Dodoca”, transportava os moradores da região. Bem acomodado entre eles seguia
a viagem ansioso, levando comigo uma bolsa com pertences e na cabeça um
amontoado de recomendações que se misturavam ao desejo de chegar. Tudo se
resumia em regras básicas: não dar trabalho, não desobedecer e evitar certos
tipos de aventuras; coisas do tipo banhos de açude, andar a cavalo e qualquer
outra coisa que colocasse minha vida em risco. Como menino da cidade não
conhecia os segredos do campo, por isso não devia me arriscar.
Enquanto o carro trafegava
aos solavancos pela desconfortável estrada, eu observava o solo tórrido e
ressequido desenhando uma paisagem desoladora, ao tempo em que ouvia a conversa
dos passageiros sobre os mais variados assuntos, que iam desde a reduzida safra
de algodão, o baixo preço da oiticica e a carestia do comércio. Preocupados
lamentavam as previsões do tempo para o ano seguinte, pois Segundo os “estudos”
de Severino Macena, um perito em meteorologia, as expectativas não eram nada
animadoras. A descrença e o desânimo se transformavam em esperança pela fé de
alguém que manifestando sua crença em Deus, convencia a todos que numa
reverência diziam amém, tirando o chapéu.
A casa da fazenda era
simples tanto quanto seus moradores. Com a frente voltada para o nascente
recebia grande volume de ventos tornando-se arejada. Tinha alpendre rodeado por
extensa balaustrada onde amigos e vizinhos se reuniam a noite para jogar
conversa fora. Os mais jovens, sabendo que tempo é ouro, não perdiam a
oportunidade e trocavam olhares, iniciando namoros onde alguns acabaram em
casamento. Os assuntos eram sempre os mesmos e sempre ligados ao trabalho do
campo. Atônito eu ouvia as aventuras de João Geraldo, experiente caçador. Da
mesma forma as histórias de Zé Valdevino contadas sempre com requintes de
exagero. Também não faltavam histórias de assassinatos, lobisomem, almas
desgarradas, besta fera, além de outras entidades. Verdade ou não, as histórias
me causavam o medo suficiente para perturbar o sono.
De um lado da casa havia um
enorme curral de gado que prendia dezenas de reses leiteiras e de corte,
orgulho do patrão e fonte de renda familiar. Do mesmo lado um açude de porte
médio que armazenava água suficiente para o sustento da família e dos animais,
capaz de suportar até dois anos de seca. Logo por trás do balde um pequeno
sítio contendo goiabeiras, mangueiras, laranjeiras, cajueiros e outras, onde
podíamos saborear seus frutos sem incidência de agrotóxicos. Na sua represa,
junto a uma cerca, havia uma cruz que embora sendo o símbolo do cristianismo
assombrava a meninada. Fincada na terra, com iniciais desgastadas pelo tempo e
coberta de flores murchas lembrava o assassinato de Zé Francisco, praticado por
Zé Delfino, ambos trabalhadores do lugar e ocorrido após metade da década de
30. A passagem no local era inevitável, assim como impossível era não fazê-la
em disparada carreira.
Num alto, por trás da casa,
era destaque um enorme rochedo em forma de círculo de onde podíamos avistar
quilômetros de distâncias. Sua brancura é o motivo pelo qual se denomina o
lugar de Pedra Branca. O acesso à pedra sempre foi difícil, porém, o sacrifício
para atingir o cume é compensador em virtude da maravilhosa visão panorâmica
que oferece. Do seu ápice podemos ver o que a vista humana é capaz de alcançar.
A vida no campo é uma luta
constante, intensa e rotineira. Diariamente os afazeres se repetem. A labuta se
inicia antes mesmo do lume dos primeiros raios solares. Para mim era uma festa.
Querendo participar de tudo, despertava cedinho com o cantar da passarada, o
badalar do chocalho do rebanho e a voz do vaqueiro chamando por nome a vacaria
para a ordenha matinal. Era nomes como Mimosa, Estrelinha, Princesa que
atendiam instintivamente. Do curral, após saborear o leite morno, saíamos, eu e
alguns primos, tangendo o gado para o roçado, trabalho que se repetia
inversamente no final da tarde. Na volta não dispensávamos uma passada no sítio
para degustar frutas de incomparável sabor.
Opções não faltavam, desde levar o
leite para a leiteira e voltar montado no jumento, pastorear o arrozal,
carregar água e lenha para o consumo de casa, deixar o “de comer” aos trabalhadores.
Tudo isso eu fazia sem constrangimento. Em todas essas andanças, sempre munido
de um estilingue e pedras, estava eu, pronto para impiedosamente tirar a vida
de animais e pássaros multicoloridos, calando de vez seus cantos harmoniosos.
Atirava em tudo – ou quase tudo – pois segundo a meninada matar lagartixas dava
azar. Certa feita, engoli o minúsculo coração de um beija-flor por acreditar
que iria melhorar minha pontaria, segundo a crença dos maiores. Se valeu a
pena, não sei, mas com certeza foi um tanto indigesto.
Mas, o melhor mesmo era os banhos de açude.
Volta e meia estávamos lá, como que esquecidos das recomendações, fazendo as
maiores peripécias sem ter noção do perigo que corríamos.
Fim de tarde. Não podia
faltar no campinho de várzea um bate-bola em família. Entre primos havia o
suficiente para formar mais de um time. Vez por outra jogávamos contra os
sítios vizinhos, onde eu, já adolescente, exibia com orgulho a indumentária
necessária de um goleiro. Alguns jogavam bem e não ficavam a dever aos da
cidade. O craque era “Zé de Neco” e “Toinho de Honorato” o zagueiro respeitado,
uma barreira instransponível.
Nesse ínterim, enquanto o
sol se escondia no poente formando o ocaso, se ouvia o programa de forró ”No
Terreiro da Fazenda“, pela Rádio Alto Piranhas. Cada casa ostentava
orgulhosamente na sala um rádio de pilhas. Quer fosse Canarinho, Campeão ou
Phillips, ornamentava a sala ocupando um lugar de destaque e sobre o qual um
pano bordado com o nome rádio servia de enfeite e proteção.
O dia passava seguido pela
noite que chegava trazendo seus segredos. Cheia de mistérios transformava o
ânimo em medo. O lobisomem com seu disfarce, a besta-fera pela ferocidade e a
rasga – mortalha com seu pio agourento me aterrorizavam imprimindo espanto.
Sequer assoviar podia, pois atraia cobras. Talvez tenha começado aí o medo que
sinto das serpentes. Enquanto isso silenciosamente rezava para afastar o
pânico. O sono dominava aos poucos adormecendo os sentidos e nesse estado de
inércia o pensamento se dissipava com todo presságio. Como num passe de mágica
mais uma noite se esvaia cedendo o espaço a um novo dia. Novamente eu
despertava para repetir as mesmas e construir novas cenas, pois o poder de
criatividade de uma criança é infinito. Daí, o dizer dos mais antigos: “ninguém
duvide nada de menino”.
A dormida se dava de
preferência na casa de Titia Severina (Biró), onde ficávamos até altas horas,
eu e alguns primos a conversar. Sentia-me atraído principalmente pelas
histórias de Toinho e Basílio, trazidas de São Paulo, que eu achava ficar no
fim do mundo. Embora fosse bem acolhido em todas, a casa das Tias Joaninha e
Madalena era meu porto seguro, onde tinha tratamento especial. Ambas solteiras
dispensavam aos sobrinhos o amor dos filhos que nunca tiveram. A elas tínhamos
o respeito de avós.
Partindo do princípio de que
tudo tem começo e fim e que toda ida tem volta, o passeio estava acabando e o
retorno se aproximava a galope. A contagem regressiva abreviava o tempo que eu
desejava nunca parasse. Assim, como na ida, a volta se deu no mesmo caminhão,
com as mesmas pessoas que conversavam os mesmos assuntos. E, voltando, eu
trazia a felicidade de ter ido, a ânsia de reencontrar os amigos da cidade e a
esperança de voltar. Afinal, tinha cumprido as normas, por isso me sentia
merecedor de um novo passeio que eu gostaria fosse em breve. Mal acabara de
chegar reunia os amigos para falar do passeio, contar as histórias sempre
aumentadas, sempre confirmadas por Pretinho – meu irmão.
As dificuldades cada vez
maiores, como sucessivas secas e a desvalorização dos produtos agrícolas não
pouparam que a Pedra Branca, outrora habitada, fosse também vítima do êxodo
rural tornando-se desabitada. Hoje, na inatividade, resta apenas uma dúzia de
casas abandonadas, currais vazios e porteiras escancaradas pela inexistência de
rebanho. Enfim, por analogia, prá que gaiola se não tenho passarinho.
De lembrança resta ainda um
velho carro de boi esquecido à sombra de um juazeiro, onde somente suas rodas
de ferro resistiram ao tempo como prova de sua fortaleza no passado. Enquanto
isso, na sala da casa grande, velhos chocalhos pendurados num cambito, pela
força dos ventos, tocam tristes com saudade do rebanho que não mais existe.
Enfim, a pedra branca, ainda
firme e atraente, ostentando a mesma imponência, permanece em silêncio como
testemunha de tudo o que ali aconteceu. Seu caráter inanimado não permite
sequer lamentar a ausência dos que se foram e seu estado de solidão.
Todos estes fatos, ativos em
nossas lembranças, constituem um passado vivo, por isso, ainda comentados com
evidência nos encontros de família.
É com imensa saudade que
relembro AS FÉRIAS NA PEDRA BRANCA.
Pombal, 13 de dezembro de
2012.
*Professor,
Ex- Diretor da Escola Estadual “João da Mata” e Ex-Secretário de Administração
do Município de Pombal - PB.
FÉRIAS NA PEDRA BRANCA
Reviewed by Clemildo Brunet
on
12/15/2012 09:42:00 AM
Rating:
Nenhum comentário
Postar um comentário