O DIA AZIAGO DA SUPERSTIÇÃO SERTANEJA
J. Romero Araújo Cardoso |
Por José Romero Araújo Cardoso
Pedro macambira acordou sobressaltado na
alta madrugada sertaneja, despertado com o canto insistente e fora de hora do
galo magricela que imperava célere no terreiro de sua tosca e humilde casinha
de taipa, construída com material encontrado por ali mesmo, naqueles carrascais
perdidos no meio da caatinga desolada e cinzenta devido à ação implacável da
seca inclemente que há mais de dois anos castigava o semiárido, a qual, para
infelicidade dos povos interioranos, tinha seus efeitos repercutidos em áreas
antes relativamente livres das estiagens com as quais acostumara-se a enfrentar
nesses cinquenta e dois anos de vida sofrida, quase dez ao lado da família que
formara.
Aves noturnas contribuíram para fustigar
mau presságio em seu imaginário sertanejo, pois bem no alto da tosca chaminé de
onde saia a fumaça preta exalada do fogão à lenha, mantido aceso em fogo
brando, pousou desafiante rasga-mortalha, a qual passou a emitir sons
estridentes que imemorialmente causam arrepios no
Na tarde do domingo, dia primeiro de
agosto, assombrara-se com o lamento contínuo de uma acauã que parecia fitar os
raios solares, como a invocar lhes a crestar ainda mais as veredas adustas do
sertão calcinado pela seca que a cada dia se tornava mais insuportável.
Um engordurado calendário pendurado na
parede de barro, recebido como brinde do dono da única farmácia da cidade,
quando fora no início do ano comprar remédios para tentar curar as bicheiras
dos meninos, estava preso por um prego enferrujado. Pedro havia assinalado em
forma de circunferência o dia dois de agosto, primeira segunda-feira do mês
considerado no sertão como de desgosto.
É um dia encarado como aziago na
tradição do sertão, fruto de experiências passadas de geração a geração, com o
qual, segundo os antepassados, precisa-se ter cuidado, respeitá-lo quanto ao
que diziam os antigos, no que se refere aos seus significados e mistérios. No
linguajar matuto, dia aziago tornou-se dias e águas, fomentando enigmas e
divagações metafísicas.
Água suja e salobra, recolhida a duras
penas de uma cacimba quase seca, localizada a dois quilômetros de sua humilde
tapera, foi despejada de um balde em uma bacia plástica que conseguiu comprar
na feira da cidade. Molhou o rosto e foi acordar Maria de Eulália e os dois
meninos – Lucas, de cinco anos e Raimundo, de sete.
Precisava estar bem cedo no meio da
caatinga para tentar retirar a macambira que serviria para ganhar alguns
trocados, vendendo-a para que filhos de pessoas mais afortunadas se divertissem
fazendo gaiolas para manter cativos inocentes e desditados cabeças-vermelhas,
assuns-pretos, pomba-rolas e outras aves encontradas a duras penas na região.
A fome atroz passada em secas passadas
fê-lo experimentar farinha de mucunã a fim de mitigar a carência nutricional.
Foi uma experiência terrível, pois a química venenosa contida na semente quase
o levara a óbito. Ficou a certeza que nunca mais repetiria a dose e nem
tampouco ofereceria mucunã para sua família provar. Essa promessa foi feita aos
pés da imagem do Senhor São José quando, em leva de retirantes, passavam em uma
cidade perdida nas quebradas do sertão.
Ninguém conhecia naquelas bandas Pedro
Bento de Sousa, seu nome de batismo, mas Pedro macambira, sim, em razão que foi
a esse ofício, retirar e comercializar macambira, ao qual se dedicou com afinco
desde quando chegara por ali na tentativa de fixar-se com a família na condição
de moradores.
Lenha para fazer carvão era algo fora de
cogitação. O patrão havia proibido o corte de qualquer árvore. Esse era um
privilégio dele. A venda da madeira era feita na cidade, pois, construtores de
casas e a única padaria que existia, compravam parte da vegetação retirada da
fazenda. Destinava, ainda, fração do material lenhoso para consertos de cercas.
Como o tempo mudou, pensou Pedro
macambira. Há menos de dez anos o terreiro estava cheio de passarinhos, de
todas as espécies. Hoje, encontrarmos um de uma única espécie é um trabalho
duríssimo. O homem não vem respeitando a natureza, por isso estamos vivendo
nessa solidão, sem o canto dos pássaros para nos alegrar.
Passando o café em um coador desgastado,
adoçando-o com rapadura preta, Maria de Eulália acompanhou discretamente as
reflexões silenciosas do esposo, convicta, não precisava perguntar, que giravam
em torno do dia considerado um entre tantos de maior respeito dentro das
superstições contidas nas tradições sertanejas.
Como fazer para retirar a macambira sem
usar algum artefato de metal? Como manter firme os ensinamentos dos meus pais e
avós se tenho que garantir alguns trocados para o sustento da minha família
durante a semana? Indagava Pedro macambira a si mesmo. A agricultura não
prospera por causa da seca. Não temos condições de mandar cavar um poço e
termos água para abastecer a casa, irrigar a plantação e saciar nossa sede e a
dos animais. Vivemos de favores na terra dos outros, o patrão só vem aqui em
casa quando é para mandar fazer alguma coisa para ele, não nos ajuda, vive como
um rei, onde não falta nada nas terras que planta e cria gado, domínios
extensos que fazem lembrar as histórias medievais que os cantadores de outrora
difundiam no sertão carente de informações. Para o pobre só resta lutar para
sobreviver e pedir a Deus para mandar melhores dias, por que aqui na terra a
ganância fala mais alto e não há solidariedade de forma alguma, a fomentar a
união entre as pessoas.
Por falar em patrão, o barulho de um
possante motor de caminhonete foi notado, vindo na direção da casinha de taipa
da sofrida e morigerada família sertaneja. Era o senhor de baraço e cutelo,
dono das terras e da vida, vindo ordenar que um serviço fosse feito com
urgência até o fim do dia.
Uma árvore frondosa do semiárido, uma
cajazeira, havia crescido em direção a uma trifásica de alta tensão que trazia
energia de Paulo Afonso para iluminar a cidade, pois luz elétrica ainda não
tinha beneficiado boa parte da zona rural. Quando os galhos se tangenciavam com
os fios causavam descargas descomunais que estavam pondo em risco as vidas dos
valiosos animais dos rebanhos do dono das terras do sem fim onde Pedro Macambira
e sua família eram moradores.
Planta de crescimento rápido, atingindo
mais de vinte metros de altura, a cajazeira possui raízes profundas que
facilitam a absorção de água pela planta. Tubérculo geralmente existente nas
extremidades de suas raízes era utilizado, quando das grandes secas, para o
fabrico da farinha. O cosmopolitismo tropical é uma das características de sua
ocorrência. Na Amazônia é conhecida por Taperebá, enquanto nos Estados sulinos
conhecem-na por Cajámirim.
Maria de Eulália sentiu um frio na
espinha quando a voz gutural do homem mau encarado à sua frente ditou as ordens
de forma irresoluta, pois, para cortar os galhos ressequidos, tenebrosos e
desafiadores da cajazeira, seria necessário fazer uso de algum artefato
metálico, como uma foice.
Lucas e Raimundo, sem entender direito o
que se passava, notaram que uma lágrima rolava da face sofrida da genitora,
enquanto Pedro macambira, empalidecido e quase sem voz, retrucava ao patrão que
o dias e águas era uma data temida e respeitada pelo seu povo. Seria uma
blasfêmia usar qualquer instrumento de metal naquele dia especial de reserva
milenar naquela superstição presente na tradição sertaneja.
Acostumado a ditar ordens e ser
obedecido prontamente, o patrão quase teve um ataque de loucura diante das
ponderações do casal à sua frente. Berrou que respeitassem sua barba grisalha e
que Pedro fosse cumprir o que havia determinado, sob pena de serem expulsos
daquela terra o mais rápido possível.
Lembranças de aflições inenarráveis
vieram-lhes à mente, pois vagavam feito almas penadas pelas quebradas do
sertão, buscando criar a família que Deus lhes deu. A fixação como moradores
foi muito difícil. O patrão não queria consentir que gente vinda de longe
ocupasse suas terras, mesmo sendo um inexpressivo pedaço de chão.
Batendo com força a porta do veículo, o
arrogante senhor absoluto, expressão maior da sociedade sertaneja agropastoril
arcaica e patriarcal, definiu sua intransigência com relação ao cumprimento da
ordem dada ao humilde roceiro. A tradição não interessava, mas tão somente a
neutralização da ameaça que punha em perigo os seus rebanhos.
Definida
a ordem de tarefas, Pedro priorizou a luta para encher a barriga da família. O
patrão havia dito que esperava até o fim do dia, então que esperasse. Enfiou o
surrado chapéu de couro na cabeça, enrolou a funda, dando uma volta em sua
cintura, encheu o cantil com água suja e barrenta e dentro do alforje colocou
três pedaços de rapadura preta para minimizar a fome, tomando o rumo de um
serrote arisco e cheio de percalços, onde sabia existir macambira em
abundância.
No caminho notou que os efeitos da seca
e da ação do homem estavam se concretizando de forma agônica. Os animais com os
quais acostumara-se a caçar em suas caminhadas, principalmente quando para
extrair macambira, não eram encontrados com facilidade. Quando conseguia
visualizar um tejo ou um mocó, estes eram tão rápidos que ficavam logo distante
da sua pontaria.
Arma de fogo era um privilégio que não
possuía. Não tinha dinheiro para comprar pólvora e chumbo, não obstante saber
perfeitamente como fabricar artesanalmente uma espingarda bate-bucha.
Ao chegar no serrote, notou a abundância
de macambira, embora o problema para retirá-la estivesse no respeito à tradição
sertaneja que diz, com relação ao dia aziago, não ser recomendável o uso de
instrumentos metálicos.
A primeira tentativa de retirada da
macambira sem uso de instrumento de metal revelou-se sofrível. O espinhos da
macambira logo penetraram na áspera pele do sertanejo. A macambira, escolhendo
caprichosamente fendas entre pedras para nascer e se desenvolver, mostrou-se
desafiadora ao senso comum.
Arrancá-las com as mãos nuas tornou-se
um dos maiores suplícios já enfrentado pelo heroico filho das caatingas. A
busca por melhor qualidade de vida para sua família, no entanto, falava mais
alto e a cada tentativa aumentava-lhe a nobreza de espírito a ponto de fazê-lo
esquecer as dores lascinantes, resultando em relativo sucesso que garantiu-lhe
certa quantidade de talos da bromeliácea.
Sangrando bastante as mãos e os pés,
Pedro desceu o serrote com os seus troféus, os quais renderiam uns bons
trocados que permitiriam a compra de um pouco de querosene e um tanto de
mantimento no barracão mantido pelo patrão na sede da fazenda.
Trazia consigo a certeza que a tradição
passada de pai para filho não tinha sido quebrada. Não havia utilizado
instrumento de metal no dias e águas para retirar a macambira que serviria para
mitigar um pouco dos infortúnios de sua existência e a da sua família marcadas
pelas secas e pelas humilhações terrenas.
Sedento e faminto, colocou um taco de
rapadura na boca e passou a mastigá-la bem devagar, tomando alguns goles da
água suja e barrenta a fim de facilitar a degustação do doce sertanejo.
Passavam das três da tarde quando Pedro
chegou em sua moradia. Maria de Eulália, aflita, com Lucas e Raimundo segurando-lhes
a barra da saia, recebeu o marido com ar espavorido. O dono da terra, na
ausência do esposo, tinha vindo reiterar a ordem referente à urgência na poda
da cajazeira.
Disse-lhe que o patrão tinha gritado e
ameaçado, jurando expulsar a família caso o serviço de corte da árvore não
fosse feito até as quatro horas da tarde. Não queria mais perder nenhum boi gir
ou zebu ou um caprino boer por causa das descargas da alta tensão quando os
galhos da cajazeiras batiam nos fios. O serviço, tinha esbravejado o insensível
homem, conforme Maria de Eulália relatava a Pedro, tinha que ser feito por ele.
Esmorecido e cansado, Pedro sentou-se
num banquinho de aroeira e pôs-se a meditar sobre a situação, sendo despertado
pela razão, pois o tempo corria e até as quatro horas tinha que cortar os
galhos da sinistra cajazeira, sob pena de perder o abrigo temporário conseguido
com muita luta.
No velho baú estava guardada uma foice
que levava em seus deslocamentos pelas veredas da terra do sol. Fitou-a durante
alguns minutos e retirou-se do local onde a guardara, segurando firme o cabo de
imburana, entrando em uma espécie de transe emocional, condicionado pelas bases
morais de suas tradições e crenças.
Despediu-se de Maria de Eulália e dos
meninos e foi cumprir sua sina, seu destino sempre marcado por tragédias
inenarráveis e sofrimentos atrozes que poderiam ser evitados, caso a
responsabilidade humana fluísse harmonicamente.
Deslocou-se até o perigo representado
pela cajazeira ameaçadora que tangenciava seus galhos com os fios da alta
tensão. Ventava bastante e um leve toque de algumas das partes do vegetal na
eletricidade violenta fez com que fagulhas se espalhassem pelo chão, indicando
o iminente.
Não sentia medo, pois não era homem para
tremer nas bases, mas aquilo tudo representava uma afronta ao que seu velho pai
sempre lhe dizia, para respeitar a primeira segunda-feira do mês de agosto, o
dia aziago, quando trabalhar com instrumentos de metal poderia ser fatal.
Pensativo, ficou algum tempo perguntando
a si mesmo de onde vinha a tradição de respeitar a primeira segunda-feira do
mês de agosto. De quem teria sido a ideia? O pai e o avô tinham manias
estranhas, bem como a mãe e a avó. Os antepassados ficavam no terreiro,
principalmente em dias de sexta-feira, esperando aparecer a primeira estrela,
enquanto as matriarcas não ousavam varrer a casa passando o lixo pela porta da
frente. De que povo herdaram isso? Refletia Pedro de forma enigmática. Embora
analfabeto, era muito inteligente.
Parou de imaginar as coisas e começou a
buscar dentro de si mesmo a coragem necessária para concretizar o desafio às
suas tradições, invocando toda fé possível e imaginável para que não caísse em
emboscadas do destino, como bem apregoavam os antigos.
Subiu na frondosa árvore e começou a
cortar os primeiros galhos. Algo de sobrenatural aconteceu em seguida, pois
quando tentava cortar partes menos ameaçadoras, a foice fora arremessada longe,
como se uma mão invisível estivesse a protegê-lo, adivinhando que uma tragédia
estava sendo anunciada.
Escorado no tronco da cajazeira, Pedro
chorou copiosamente, imaginando que aquilo, na verdade, seria a intervenção do
seu pai falecido há décadas, querendo poupá-lo de algo terrível.
Despertado para a realidade, a qual
envolvia as condições de vida de sua família, Pedro desceu do pé de cajazeira,
recolheu a foice misteriosamente arremessada no chão crestado e novamente
voltou ao desafio.
Nova ventania e os galhos voltaram a
tocar a cajazeira com Pedro em cima da árvore. Fagulhas cobriram-lhe por
inteiro. Não sentiu medo, mas que era algo tenebroso, isso era, com absoluta
certeza.
À proporção que Pedro escalava a
cajazeira, o perigo aumentava exponencialmente. Partes fumegantes começavam a
deixá-lo com náuseas, mas não havia condições de retornar, tudo estava traçado,
tudo estava selado.
O galho mais sensível foi alcançado.
Pedro começou o corte deste, concluindo-o heroicamente, embora tenha vergado
sobre a alta tensão, fulminando-o instantaneamente.
Chegava ao fim a existência do bravo
sertanejo que, instigado pela ganancia e falta de solidariedade, fora obrigado
a desafiar o rigor instituído pela tradição no que diz respeito ao dia
consagrado aos mistérios que envolvem uma construção coletiva realizada em
bases evocativas que remontam ao milenarismo das crenças dos antigos
colonizadores.
Conto laureado com Menção Honrosa no
Resultado final do Terceiro Concurso de Crônicas, Contos e Poesias "João
Batista Cascudo Rodrigues" - Versão 2016 - Promoção: Academia Mossoroense
de Letras – AMOL
José Romero Araújo Cardoso (Mini Currículo):
*Geógrafo (UFPB). Especialista em Geografia
e Gestão Territorial (UFPB-1996) e em Organização de Arquivos (UFPB - 1997).
Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (2002). Atualmente é professor adjunto IV do Departamento de
Geografia/DGE da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais/FAFIC da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Tem experiência na área de
Geografia Humana, com ênfase à Geografia Agrária, atuando principalmente nos
seguintes temas: ambientalismo, nordeste, temas regionais. Espeleologia é tema
presente em pesquisas. Escritor e articulista cultural. Escreve para diversos
jornais, sites e blogs. Sócio da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço
(SBEC) e do Instituto Cultural do Oeste Potiguar (ICOP). Membro da Associação
Mossoroense de Escritores (ASCRIM).
Endereço
residencial:Rua Raimundo Guilherme, 117 – Quadra 34 – Lote 32 – Conjunto Vingt
Rosado – Mossoró – RN – CEP: 59.626-630 – Fones: (84) 9-8738-0646 – (84)
9-9702-3596 – E-mail:romero.cardoso@gmail.com
O DIA AZIAGO DA SUPERSTIÇÃO SERTANEJA
Reviewed by Clemildo Brunet
on
11/21/2016 08:53:00 AM
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