Editorial: A renúncia do presidente
POR O GLOBO 19/05/2017 15:20 / atualizado
19/05/2017 16:38
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Um presidente da República aceita
receber a visita de um megaempresário alvo de cinco operações da Polícia
Federal que apuram o pagamento de milhões em propinas entregues a autoridades
públicas, inclusive a aliados do próprio presidente. O encontro não é às
claras, no Palácio do Planalto, com agenda pública. Ele se dá quase às onze
horas da noite na residência do presidente, de forma clandestina. Ao sair, o
empresário combina novos encontros do tipo, e se vangloria do esquema que deu
certo: "Fui chegando, eles abriram. Nem perguntaram o meu nome". A
simples decisão de recebê-lo já guardaria boa dose de escândalo. Mas houve
mais, muito mais.
Em diálogo que revela intimidade entre
os dois, o empresário quer saber como anda a relação do presidente com um
ex-deputado, ex-aliado do presidente, preso há meses, acusado de se deixar
corromper por milhões. Este ex-deputado, em outro inquérito, é acusado
inclusive de receber propina do empresário para facilitar a vida de suas
empresas no FI-FGTS da Caixa Econômica Federal. O presidente se mostra amuado,
e
Ao ouvir esse relato do presidente, o
empresário procura tranquilizá-lo mostrando os préstimos que fez. Diz,
abertamente, que "zerou" as "pendências" com o ex-deputado,
que tinha ido "firme" contra ele na cobrança. E que ao zerar as
pendências, tirou-o "da frente". Mais tarde um pouco, em outro
trecho, diz que conseguiu "ficar de bem" com ele. Como o presidente
reage? Com um incentivo: "Tem que manter isso, viu?"
Não é preciso grande esforço para
entender o significado dessa sequência de diálogos. Afinal, que pendências,
senão o pagamento de propinas ainda não entregues, pode ter o empresário com um
ex-deputado preso por corrupção? Que objetivo terá tido o empresário quando
afirmou que, zerando as pendências, conseguiu ficar de bem com ele, senão
tranquilizar o presidente quanto ao fato de que, com aquelas providências,
conseguiu mantê-lo quieto? E, por fim, que significado pode ter o incentivo do
presidente ("tem que manter isso, viu"), senão uma advertência para
que o empresário continue com as pendências zeradas, tirando o ex-deputado da
frente e se mantendo bem com ele?
Esses diálogos falam por si e bastariam
para fazer ruir a imagem de integridade moral que o presidente tem orgulho de
cultivar. Mas houve mais. O empresário relata as suas agruras com a Justiça, e,
abertamente, narra ao presidente alguns êxitos que suas práticas de corrupção
lhe permitiram ter. Conta que tem em mãos dois juízes, que lhe facilitam a
vida, e um procurador, que lhe repassa informações. Um escândalo. O que
faz o presidente? Expulsa o empresário
de sua casa e o denuncia as autoridades? Não. Exclama, satisfeito: "Ótimo,
ótimo".
Não é tudo, porém. Em menos de 40
minutos de conversa, o empresário ainda encontra tempo para se queixar de um
ex-funcionário seu, atual ministro da Fazenda. Diz, com desfaçatez, que tem
enfrentado resistência no ministro da Fazenda para conseguir a troca dos mais
altos funcionários do governo na área econômica: o secretário da Receita
Federal, a presidente do BNDES, o presidente do Cade e o presidente da CVM.
Pede, então, que seja autorizado a usar o nome do presidente quando for
novamente ao ministro da Fazenda com tais pleitos. O que faz o presidente?
Manda-o embora, indignado? Não, de forma alguma. O presidente autoriza:
"Pode fazer".
Este jornal apoiou desde o primeiro
instante o projeto reformista do presidente Michel Temer. Acreditou e acredita
que, mais do que dele, o projeto é dos brasileiros, porque somente ele fará o
Brasil encontrar o caminho do crescimento, fundamental para o bem-estar de
todos os brasileiros. As reformas são essenciais para conduzir o país para a
estabilidade política, para a paz social e para o normal funcionamento de
nossas instituições. Tal projeto fará o país chegar a 2018 maduro para fazer a
escolha do futuro presidente do país num ambiente de normalidade política e
econômica.
Mas a crença nesse projeto não pode
levar ao autoengano, à cegueira, a virar as costas para a verdade. Não pode
levar ao desrespeito a princípios morais e éticos. Esses diálogos expõem, com
clareza cristalina, o significado do encontro clandestino do presidente Michel
Temer com o empresário Joesley Batista. Ao abrir as portas de sua casa ao
empresário, o presidente abriu também as portas para a sua derrocada. E tornou
verossímeis as delações da Odebrecht, divulgadas recentemente, e as de Joesley,
que vieram agora a público.
Nenhum cidadão, cônscio das obrigações
da cidadania, pode deixar de reconhecer que o presidente perdeu as condições
morais, éticas, políticas e administrativas para continuar governando o Brasil.
Há os que pensam que o fim deste governo provocará, mais uma vez, o atraso da
tão esperada estabilidade, do tão almejado crescimento econômico, da tão
sonhada paz social. Mas é justamente o contrário. A realidade não é aquilo que
sonhamos, mas aquilo que vivemos. Fingir que o escândalo não passa de uma
inocente conversa entre amigos, iludir-se achando que é melhor tapar o nariz e
ver as reformas logo aprovadas, tomar o caminho hipócrita de que nada tão fora
da rotina aconteceu não é uma opção. Fazer isso, além de contribuir para a
perpetuação de práticas que têm sido a desgraça do nosso país, não apressará o
projeto de reformas de que o Brasil necessita desesperadamente. Será, isso sim,
a razão para que ele seja mais uma vez postergado. Só um governo com condições
morais e éticas pode levá-lo adiante. Quanto mais rapidamente esse novo governo
estiver instalado, de acordo com o que determina a Constituição, tanto melhor.
A renúncia é uma decisão unilateral do
presidente. Se desejar, não o que é melhor para si, mas para o país, esta
acabará sendo a decisão que Michel Temer tomará. É o que os cidadãos de bem
esperam dele. Se não o fizer, arrastará o Brasil a uma crise política ainda
mais profunda que, ninguém se engane, chegará, contudo, ao mesmo resultado,
seja pelo impeachment, seja por denúncia acolhida pelo Supremo Tribunal
Federal. O caminho pela frente não será fácil. Mas, se há um consolo, é que a
Constituição cidadã de 1988 tem o roteiro para percorrê-lo. O Brasil deve se manter
integralmente fiel a ela, sem inovações ou atalhos, e enfrentar a realidade sem
ilusões vãs. E, passo a passo, chegar ao futuro de bem-estar que toda a nação
deseja.
Fonte:
O Globo/Opinião
Editorial: A renúncia do presidente
Reviewed by Clemildo Brunet
on
5/19/2017 05:18:00 PM
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