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ADOLESCENTES DE ANTANHO: Éramos felizes e...

Reminiscências - I

Ignácio Tavares
Por Ignácio Tavares*

No alvorecer da minha adolescência olha lá faz muito tempo, ponha tempo nisso, os meninos da Rua do Comércio dominavam o extenso território que compreendia parte da Rua da Cruz, toda Rua de Baixo, o adro da Igreja do Rosário, o campinho em frente à Cadeia pública, além do nosso habitat natural.

Conhecíamos toda meninada que residia nessas subáreas, assim como os freqüentadores do calçadão da Igreja do Rosário, originários de outras ruas. Neste lugar a gente se reunia pra conversar sobre coisas próprias de adolescentes, depois bater bola no campinho em frente à cadeia pública.

Era menino demais. Certa vez passou um cidadão idoso parou um pouco nos observou e disse: “vocês são o futuro do Brasil”. Ninguém entendeu o porquê de tão enfática profecia, entretanto, jamais a esquecemos. É tanto que vez por outra nos perguntávamos: o que foi que aquele homem quis dizer com aquela historia de que nós somos o futuro do Brasil? Pasmem meus senhores ninguém soube responder.

Era isso mesmo, o calçadão da Igreja parecia um formigueiro de meninos. De vez em quando alguns se desentendiam porem, sem maiores conseqüências. Decerto havia os considerados valentões que costumavam desafiar uns e outros para uma briga, por qualquer asneira.

Geraldo de Lourenço Silva era um dos tais que mais gostava de encrencas. O seu físico avantajado intimidava qualquer um que tentasse enfrentá-lo. Numa ocasião eu e o primo Benigno de Candido resolvemos desafiá-lo. Desvantagem: éramos dois contra um. Ademais estávamos armados com potentes baleeiras, com pedras nos bolsos suficientes pra uma briga demorada.

Geraldo nos evitou. Por isso fomos aclamados e elevados a categoria de heróis, pois, até então ninguém ousara desafiar o temido galego de Lourenço Silva. A partir desse momento nos tornamos amigos, fato este que muito nos alegrou, porque o galego era mesmo perigoso.

Havia outro freqüentador do ambiente que vez por outra desafiava alguém pra briga. Refiro-me a Isaac de Cristalino. Ao contrário de Geraldo, era dotado de físico mirrado, dessa forma, pouco apropriado para o exercício da briga. Assim sendo, a sua valentia não era levada a sério.

A rigor Isaac era uma figura divertida que não metia medo a ninguém. Era craque em botar apelido, principalmente naqueles meninos mais feios e tímidos que freqüentavam o ambiente. Infeliz daquele que caísse no campo de visão de Isaac, porque a desgraça estava feita.

Outro bom de briga era Clovis Brunet. Os amigos mais próximos o apelidavam de o “Mudo”. Era calmo, caladão, pouco falava, sempre na dele. Não insultava ninguém, mas, se fosse desafiado pra uma briga, com certeza estava pronto pra o que desse e viesse. Dado este seu comportamento, seja, calado e bom de briga, era respeitado por todos, inclusive pelo temido galego Gerado de Lourenço.

Os meninos da Rua da Cruz não gostavam de freqüentar o calçadão da Igreja. Pra eles o ambiente era lugar de gente rica. Os amigos referiam-se a presença dos meninos das ruas Nova, João Pessoa, Coronel Jose Fernandes (Rua do Rio), que assim como nós, também gostavam de freqüentar o calçadão.

A garotada da Rua do Comercio navegava nas águas da transição da classe média baixa para a alta, não tinha dificuldade para se comunicar e conviver com os ditos meninos ricos. Mas, na hora de organizar o nosso time de futebol, sem dúvida, recorríamos à meninada da Rua da Cruz, pois, ali moravam alguns craques bons de bola.

Quando foi instalado novo Grupo Escolar João da Mata, a questão territorial passou a ser irrelevante. A mistura dos meninos das diversas classes sociais no mesmo ambiente minimizou a barreira das supostas diferenças entre ricos e pobres. Entendíamos que éramos todos iguais, uma vez que estávamos no mesmo lugar, na mesma hora, com os mesmos objetivos.

Nós, da Rua do Comércio, jamais levamos a sério essa questão de diferença entre ricos e pobres, até porque não havia motivo pra isso. As nossas diferenças, em termos de rendas familiares, eram mínimas. Assim sendo, a nossa infância foi sadia, posto que, vivíamos juntos, unidos, na busca de desfrutar das oportunidades que a idade nos permitia.

É claro que havia momentos reservados apenas para meninada da nossa rua. Tomar banho no rio, mamar nas tetas das cabras de Marcionilo, pegar cajaranas do sitio de dona Neca, adentrar a roça de Joaquim a Cavalo, subir no pé de trapiar da casa do meu tio Cândido, chupar as canas caianas na roça de Zé Bispo, era coisa exclusivamente nossa. Era muita emoção para os nossos corações juvenis.

Havia em toda extensão da nossa rua muitos pés de fícus. À sombra dessas arvores, ao por do sol, fazíamos encontros pra conversar, contar as últimas do dia, jogar castanha e programar algumas traquinagens.

A solidariedade era a marca maior da nossa convivência no dia a dia. Sofremos algumas perdas que nos marcaram para sempre. A morte de Bebé, o segundo filho de Leó Formiga, foi um golpe terrível. Por muitos dias a meninada entrou em estado de profunda tristeza sem animo sequer para sair de casa.

Atribuímos a morte de Bebé a uma coruja rasga mortalha que morava na torre da Igreja do Rosário. A ave agourenta toda noite sobrevoava a Rua do Comércio a emitir assombrosos cantos que nos deixavam de cabelos arrepiados.

Era senso comum, para toda comunidade do lugar, que o canto da rasga mortalha era sinal de mau presságio. Pra o nosso desconforto toda noite, a ave se esgoelava a cantar, a vôos rasantes sobre o casario da Rua do Comercio.

O estado de saúde de Bebe agravou-se a ponto de ser desenganado pelo médico da cidade. Aconteceu que um dia antes do seu falecimento, a maldita coruja sobrevoou a sua casa a entoar o seu canto macabro, sobretudo assustador. Em razão disso acreditávamos que, a dita cuja, foi realmente, a responsável pela morte de Bebé. Coisas de crianças.

Pensamos assassiná-la para vingar a perda do amigo. Era uma tarefa difícil, pois, havíamos que escalar a torre da Igreja longe dos olhares do Padre. Com o tempo gente esqueceu o projeto. Por outro lado a rasga mortalha continuou a nos perturbar com o seu canto de mau presságio.

Ainda hoje, essas aves de hábito noturno costumam quebrar o silencio das madrugadas da Rua do Comercio. Quando a escuto remeto-me aquele passado distante quando era levado a acreditar que uma inocente ave era capaz de roubar a vida de um jovem no alvorecer da vida.

Não demorou muito tempo outro membro do grupo inesperadamente faleceu. Foi o saudoso Lairton Formiga, filho de Nô formiga. Foi mais um golpe pesado para a meninada da Rua do Comércio. Nos dias seguintes a morte do amigo, sempre que a gente se reunia alguém perguntava: quem será o próximo? Graças a Deus as coisas pararam por aí.

Com a perda dos dois amigos muita coisa mudou na vida d’a gente. Como criança pensava que a morte era coisa de gente velha. Em razão desse entendimento, nas nossas reflexões, achávamos que a morte para o idoso era um porto de embarque. Agora, pra nós crianças era um terrível desastre sem data anunciada pra acontecer.

Apesar dos sentimentos de perda que nos deixou perturbados, nada mudou na nossa caminhada juvenil. Na Rua do Comercio nós éramos de 12 a 14 crianças hiperativas repletas de energia. Havia sim um líder. Era o Boy ou Gilvan de Leó, o mais velho do grupo. Qualquer encrenca que houvesse o Boy estava ao nosso lado pra resolver ao seu modo.

Gilvan era de estatura mediana de pouca massa física, mas, extremamente habilidoso na arte da briga. Certa vez estávamos a nos banhar no poço da pedrinha, quando aparece Dilau de João Brejeiro. Dilau era considerado o terror da Rua da Cruz e adjacências. Costumava desafiar os meninos da Rua do Comercio pra briga. Dada a sua fama de valentão a gente evitava enfrentá-lo.

Dilau não entrou n’água para se banhar, pois, preferiu ficar agachado sobre uma pedra, a beira do rio, a nos observar. Sem razão nenhuma começou a nos desafiar pra brigar. Já sabíamos que Dilau tinha o hábito de insultar a meninada da Rua do Comércio a fim de mostrar que era mesmo o bamba da região.

O Boy saiu pra conversar com ele a fim de evitar uma briga desnecessária, pois estávamos ali pra tomar banho, nos divertir e nada mais. Dilau levantou-se e desafiou o Boy pra uma luta corporal pra saber quem era o melhor.

O Boy topou a parada. Dentro d’água encontravam-se Eu, Dário, Fernando, Lobo, Benigno de Candido, Pereira de Déca, Mordecai, Zé Ivan Formiga, Fiinho de Zé Vicente, Severino de Godô, Paulo de Misinho, entre outros. Ficamos todos apreensivos com a situação, pois, o brigão Dilau era frio, calculista, traiçoeiro e perverso.

Saímos todos para dar apoio ao Boy. A briga começou, mas, a gente sabia que Gilvan era bom de briga. Num lance rápido o Boy derrubou Dilau, firmou-se por cima deixando-o imobilizado. Haja tapas, socos e palavrões. Depois de cerca de cinco minutos de briga, Dilau parecia se dá por vencido. Todos nos alegramos ao ver Boy vencer o terror dos meninos da Rua da Cruz e da Rua do Comércio.

Aconteceu que o Boy se descuidou e Dilau, como último recurso para vencer a briga, cravou uma mordida na sua bochecha esquerda. Foi difícil desvencilhar Dilau da bochecha do Boy. Só houve uma saída: o Boy cravou o dedo no olho de Dilau obrigando-o a desistir da última tentativa de virar o placar da luta.

Depois dessa briga a fama de Dilau ficou abalada. Quando desafiava alguém pra briga ouvia o que não queria ouvir: vá brigar com Gilvan de Leó!!! Dilau ficava se jeito, pois não tinha como explicar a pisa que levou do Boy. O resultado dessa briga chegou ao conhecimento dos freqüentadores do calçadão. Gilvan tornou-se o rei do pedaço o que muito nos engrandeceu, pois fazíamos parte do mesmo grupo.

Depois da refrega o calção de Gilvan ficou muito sujo de lama. Cuidadosamente lavou sua veste e pôs numa cerca pra enxugar. Voltamos a tomar banho no poço da pedrinha. Num dado momento Benigno de Candido gritou: Gilvan a vaca de dona Petronila esta terminando de comer o seu calção!! O Boy saiu em disparada, mas foi tarde demais.

E agora? Como evitar que o Boy chegue à casa nu? Com certeza Leó, seu pai, no mínimo, vai lhe dar um puxão de orelhas. Surgiu a idéia de fazermos uma saia de folhas de mufumbo amarradas com cordas de salsas, para que o Boy, pelos menos pudesse chegar à casa da sua Avò Mãe Talina.

Todos concordaram com a idéia. Assim sendo começamos trabalhar. Rapidamente conseguimos uma porção de cordas de salsas e folhas de mufumbo. Juntos iniciamos a confecção de uma saia ao redor do corpo do Boy. A sua compleição física era bem apropriada para o que estávamos a fazer. O seu corpo, por ser muito selado, permitiu, sem dificuldades, que fixássemos a saia improvisada, tal qual havíamos concebidos.

Pra despistar fizemos uma roda e pusemos o Boy no meio. Saímos em direção a Rua do Comércio até chegarmos ao beco da cadeia. Quando chegamos ao fim do beco, nas mediações da casa de seu Misinho Formiga, o Boy correu, pulou a janela, trancou-se no quarto da casa de sua Avó.

Pouco tempo depois apareceu vestido numa calça, que, com certeza não era sua, porque sobrava muito pano nas pernas. A gente observou que o boy havia posto pasta de dente na bochecha no exato lugar onde Dilau deixou marcada a sua arcada dentária. Por muito tempo a marca permaneceu viva no rosto de Boy. Mas o orgulho por ter desbancado a valentia de Dilau o fazia esquecer a cicatriz marcada no seu rosto.

É isso mesmo. Que bom seria se existisse o elixir capaz eternizar as crianças. Com certeza o mundo seria outro. O saudoso Francisco Pereira da Nóbrega nos seus escritos costumava dizer que as crianças brigam, mas, no outro dia estão abraçadas. Por outro lado, os adultos brigam, no dia seguinte estão se matando.

Ah, se o mundo fosse administrado por homens com a pureza das crianças, com certeza o planeta terra seria um céu de felicidade. Jesus no seu Ministério da pregação da Boa Nova, diz: “Se quereis ganhar a salvação eterna sede como uma criança”.

Fui criança, assim como meus amigos da Rua do Comércio, Rua da Cruz, Rua de Baixo e adjacências. Muitos desses tombaram ao longo do tempo, mas, outros continuam a viver, com certeza, a guardarem as mesmas lembranças, com o mesmo toque de saudades.

A nota triste é que o tempo passa e nós também. Como premio de consolação, só nos resta lembrar o que nos fala o cancioneiro popular: “éramos felizes e não sabíamos”.

João Pessoa, 25 de Março de 2012

*Economista e escritor pombalense.
ADOLESCENTES DE ANTANHO: Éramos felizes e... ADOLESCENTES DE ANTANHO: Éramos felizes e... Reviewed by Clemildo Brunet on 3/25/2012 05:10:00 AM Rating: 5

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