RUAS DA MINHA INFÂNCIA
Francisco Vieira |
FRANCISCO VIEIRA*
É bem verdade, o tempo inibe nossas lembranças,
mas nem todas. Algumas resistem permanecendo vivas a vida inteira.
Assim,
como num lampejo, trago à baila as ruas da minha infância, palco de minhas
travessuras. São reminiscências dos anos 50/60, vividos com intensidade,
recheadas de peraltices, aventuras e sonhos impossíveis.
Num impulso
de recordações me vejo de cara com a turma de amigos. Saudoso, contemplo se não
todos, pelo menos os mais frequentes, que os chamo como na época, cada um pelo seu
apelido. Lembro-me a partir de Pretinho – meu irmão, menino franzino e
esguio,
porém temido pela sua pontaria. Bom atirador de pedras se utilizava desse artifício
em sua defesa chegando a furar a cabeça de vários coleguinhas.
Na mente
visualizei Nequinho e Ghandy de Seu Lelé, André e Francisquinho Queiroga, Branco
e Preto de D. Nenem, Arereu e Joãozinho Espalha, Beto e Gute Bandeira,
Moreirinha e Elrizinho. Havia ainda Assis Caetano, Toinho Ugulino, Jair de D.
Lídia, Biú, Zé Piloto – O Rei da Pornografia - Toneco de D. Preta, Paulo
Abrantes e Carlito, Clemildo, João de Chicó e outros. Como subtraí-los se
dividia com eles o mesmo espaço e brincadeiras, às vezes à custa de brigas –
coisas de menino – que acabavam sempre em reconciliação. Nada que uma boa
conversa não resolvesse. Como num ritual, os desafetos, “serravam” os dedos indicadores
um do outro, encerrando a intriga, jurando retomar a amizade. Era como fumar no
“cachimbo da paz”.
O
mundo da criança tem o tamanho de sua imaginação. Sua energia é sem limite e
seu impulso incontrolável. No vigor da idade, sem compromisso e nenhuma idéia
de perigo, percorria os quatro cantos da cidade. Entretanto, por obediência aos
pais, o campo de atuação era restrito ao centro. Compreendia o largo das Praças
Getúlio Vargas, Dr. José Ferreira de Queiroga e Mons. Valeriano, além das Ruas Jerônimo
Rosado, Cel. João Leite, Cel. José Fernandes e Prof. Horácio Bandeira. São nomes
imponentes, não só pelos títulos oficiais que possuíam, mas, também, pelo poder
econômico que detinham, causa de privilégios e regalias. Contudo, prefiro
chamá-las de Praças do Centenário e Pirarucu e Rua Nova, do Cinema, do Comércio,do
Rio e do Açougue. Como criança, pouco me
interessava saber o que fizeram, para merecer tão grande homenagem. Hoje, sei,
foram pessoas detentoras da riqueza e do poder - coronéis da política - que em
vida contribuíram para o desenvolvimento do município, por isso, imortalizados.
Sem eles nossa história seria outra.
O
tempo passou e com ele crescemos para a vida. A liberdade permitiu a cada um seguir
o destino escolhido. Uns venceram, enquanto outros, à custa do sofrimento,
aprenderam às lições da vida na escola do mundo, que impiedosamente de tudo ensina
- até o que não queremos aprender. Já alguns partiram cedo. Tragados pelas
águas do Poço da “Panela”, esmagados tragicamente por um trem de ferro, um
carro desgovernado ou vitimado pelo alcoolismo, foi que Jair, Arereu e
Joãozinho Espalha, Ghandy e Zé Piloto se tornaram saudades. A falta deles ainda
é sentida e serão para sempre, porque os amigos de infância são eternos. Não
perdoamos a morte por arrebatá-los tão cedo e de forma trágicas. São
desígnios que o pecador não sabe aceitar.
As
ruas da minha infância eram o meu mundo. Sentia-me feliz com dezenas de outros,
travessos como eu, correndo todo dia e o dia todo, praças, ruas e vielas empoeiradas
ou lamacentas, alimentando sonhos e esperanças.
As
ruas largas e espaçosas – a maioria sem calçamento – nos permitiam diversas
brincadeiras. Quer fosse bode berrô, garrafão, jogos de castanha, pião ou bola
de gude, peinha-queimada e puxar carrinhos. Ou, amarelinha, Escravos de Jó, pular
corda, soltar pipas e passar o anel, esta, quase sempre acabando em namoro. É evidente,
não podia faltar: patinete, carrinhos de rolimã e principalmente futebol, nossa
maior paixão. Tudo era vivido em harmonia. Uma rotina prazerosa, alterada
somente com a chegada do pipoqueiro, o vendedor de picolé e o irresistível
cavalinho de goma do Cego Roseno. Ou, com as investidas de Mané Doido, Barrão e
outros igualmente desajuizados da época.
Igualmente
prazeroso, era o deleite de um banho de bica numa tarde chuvosa de inverno. Irresistível
também era banhar-se nas águas do Rio Piancó, saltando dos galhos das algarobas
ou apreciar curioso, a chegada do circo na Rua de Baixo e o Parque Maia na Rua
Nova. Cheio de expectativa e ansiedade fazia planos para desfrutar desse lazer
que nem sempre acontecia.
Cada
palmo dessas ruas é um pedacinho de minha infância. É parte desse tempo mágico,
época de sonhos e imaginações. De cada pedaço desse chão, fluem centenas de
lembranças que são relíquias, tantas que enumerá-las é impossível.
A
rua do cinema, onde morei anos, foi o palco principal. Dela destaco as matinês
no Cine Lux, onde me atropelava nas filas para garantir um bom lugar e assistir
as pornochanchadas brasileiras, aventuras de Tarzan e bang-bang americano. Muito
presente na lembrança as brincadeiras na casa de Seu Lelé e D. Elisa. A
paciência sem limite do casal tolerava tudo sem nada reclamar. Bom mesmo era
passear à tardinha com o carneiro “Belém”, animal de estimação de Seu Lelé. Um
minuto sobre o lombo do cordeiro era uma satisfação incontida.
Na Prof. Horácio Bandeira, além
de quebrar as vidraças do açougue, achava uma festa apedrejar os cachorros ali em
grupo. Também espetacular, era ver uma boiada atravessar comprimida uma ponte estreita
em direção ao matadouro. Parecia saber ser aquela a última viagem. Na minha
santa inocência, desejava o estouro do rebanho ou algo que exigisse destreza e
habilidade dos vaqueiros. Torcia por qualquer aventura típica de cinema.
Foi ali, lendo versos de
Leandro Gomes de Barros, como: O Pavão Misterioso, Alonso e Marina, A donzela
Teodora da vasta coleção de Antonio Nunes – avô materno – que criei o gosto pelo
cordel. Meu avô que cultivava o hábito da
leitura pelo prazer, fez dela uma prática freqüente em sua casa. Agradável rotina as reuniões noturnas para apreciar
a leitura de versos que ele fazia com muita destreza.
A vida é um processo de
constantes mudanças e nesse dinamismo tudo – ou quase tudo – é possível: a
natureza muda, as pessoas se transformam, os problemas surgem, as soluções
aparecem; mas a vida continua.
Oh! Quão diferente é a
infância nos dias de hoje. Os tempos mudaram os costumes. Já não se brinca como
antigamente. O progresso escraviza o homem desestimulando sua criatividade. A
criança que outrora improvisava brincadeiras e criava seus brinquedos, hoje se
sente privada ante o crescimento tecnológico. Se não bastasse a televisão e o
celular, agora o computador, que nos mais variados estilos escravizam o homem
ainda mais. Criado como instrumento de trabalho, estudo e pesquisa, para
facilitar a vida das pessoas, o computador, tipo: smarffone, tablet se tornou
um vício incontrolável, provando que o homem, sempre dependente do meio, não
resistiu ao poder de alienação da informática. É incalculável o número de
pessoas, principalmente jovens, a mercê da máquina. O ser humano, independente
da idade, na condição de admirador em potencial, se transforma em escravo, passando
horas diante de um PC. Esquecendo o mundo em sua volta, trocam o calor humano pela
diversificada opção do mundo cibernético. O homem torna-se cativo de suas próprias
invenções.
Comparando, é evidente a
diferença entre a infância do passado e a do presente. Transformações marcantes
afetam os costumes onde os pais são reféns da vontade de seus filhos. Ser
criança, hoje, é usufruir de brinquedos modernos, jogos sofisticados, carros
eletrônicos ou televisão “top de linha”, que substitui o aconchego familiar. E,
o que é pior, os idosos vistos com indiferença, são tratados de você ou de
“coroa”, denominação pejorativa que exprime o alto grau de desrespeito. Grande
parte da criançada é cuidada por “babás”, portanto, desprovida do amor dos pais,
outro tratamento não poderia ter, senão, o da insensibilidade.
Encerrando o ciclo da
existência, chego à última fase da vida, relembrando o ontem com saudade.
Não obstante aos tempos atuais
e seus recursos, dou viva a infância de hoje, mas, ouso afirmar: a minha foi
melhor.
Ninguém, absolutamente
ninguém, pode ao mesmo tempo estar no presente e no passado, salvo, em
pensamento. Assim, é que carrego comigo doces lembranças das RUAS DE MINHA
INFÂNCIA.
Pombal, 24 de novembro de
2013.
*Escritor, Professor, ex-Diretor da Escola Estadual João da Mata, ex-Secretário de administração do município de Pombal.
RUAS DA MINHA INFÂNCIA
Reviewed by Clemildo Brunet
on
11/26/2013 08:08:00 PM
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