banner

Cinema O som ao redor

Acaba de sair o no. 77 da Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, para a qual, a convite de seu diretor -  Marco Lucchesi -, escrevi um artigo sobre o filme O SOM AO REDOR:

W.J. Solha
W. J. Solha

O SOM AO REDOR, no meu caso, começou pelo da ópera
Dulcineia e Trancoso, a primeira armorial, libreto meu, música do
maestro Eli-Eri Moura, na noite da estreia, 26 de novembro, 2009,
Teatro de Santa Isabel, Recife. Subi ao palco, mais o compositor,
para a reverência final ante os aplausos do público, e isso foi decisivo:
dias depois recebi ligação do cineasta pernambucano Daniel Aragão,
dizendo-me que era o produtor de elenco do longa de Kleber Mendonça
Filho e
que, ao registrar aquele momento no DVD que fazia
do espetáculo, me vira e decidira: “É o seu Francisco!”
– Quero convidá-lo para um teste.
Eu adquirira aversão a todas as minhas aparições como ator no
cinema, incluindo em O Salário da Morte, de Linduarte Noronha, o
primeiro longa de ficção em 35 mm da Paraíba, de cuja produção
e elenco participara em 1970, excluindo apenas minha intervenção
no curta A Canga, de Marcus Vilar, roteiro meu e do diretor, feito a partir de meu livro homônimo. Além de O Som ao Redor, teve participações como ator no curta Antoninha, de Laércio Ferreira, e no longa Era uma vez eu, Verônica, de Marcelo Gomes, com os quais encerrou a carreira. Por este último foi premiado no Festival de Brasília
de 2012. Foi Prêmio Graciliano Ramos da UBE Rio e finalista
do Jabuti, em 2006, com História Universal da
Angústia (Bertrand Brasil 2005), tem uma trilogia
de poemas longos – Trigal com Corvos, Marco do Mundo e Este é o Homem –, vários romances (alguns, prêmios nacionais), peças de teatro, ensaios, é autor do painel Homenagem a Shakespeare, em exposição permanente no auditório da reitoria da UFPB. W. J. Solha
260
– Obrigado e me desculpe, Aragão, mas não quero.
Foi uma longa conversa, com insistência, dele, digna daqueles antigos representantes
de enciclopédias, que me havia feito botar sobre o balcão da
agência do BB de Pombal, no alto sertão paraibano, de que eu era subgerente
no final dos anos 70, Proibida a entrada de vendedores de livros durante o expediente.
– Eu vou fazer o teste aí em João Pessoa, na sua casa.
– Não, não, eu não quero mesmo.
Não houve jeito. Fiz uma tentativa desesperada: “Pode me passar o roteiro
por e-mail?”
– OK.
E caí de quatro. Pela primeira vez vi a classe média urbana nordestina
contemporânea no cinema, coisa que eu vinha fazendo em romances como
Israel Rêmora (Record 1975), Relato de Prócula (Ideia, 2009) e Arkáditch
(2012). E meu personagem – espécie de Don Corleone – fascinou-me. Logo
na primeira sequência, num diálogo excelente, oportunidade para uma série
de variações de humor: empáfia risonha, falsa humildade, ironia corrosiva,
ameaça pesada. Na segunda aparição, mergulho às duas da madrugada na
praia de Boa Viagem, bem ao lado de uma das centenas de placas vermelhas
da avenida litorânea: Área sujeita ao ataque de tubarões. Foi aí que eu disse:
– Vamos ao teste.
Foi incrível chegar à casa de Kleber, no bairro de Setúbal – junto a Boa
Viagem – e saber que ela seria o cenário central da narrativa, a residência de
Bia, esplendidamente vivida pela Maeve Jinkings. Mais marcante que isso foi
conhecer o próprio Kleber. Filho de uma intelectual que trabalhara com Gilberto
Freyre, ele certamente adquiriu, no período que viveu com ela em Londres
– dos 12 aos 18 anos –, a fleuma que não vi perturbada antes, durante ou
depois das filmagens. Extremamente seguro, tem um conhecimento incomum
de cinema, causa e resultado de suas funções de crítico do Jornal do Commercio
e colaborador da Folha de S. Paulo, bem como das revistas Continente e Cinética,
além de responsável pelo setor de cinema da Fundação Joaquim Nabuco.
De seu comparecimento quase religioso em grandes festivais internacionais,
resultou seu primeiro longa, o documentário Crítico, cheio de belas entrevistas
O som ao redor
261
com Carlos Saura, Gus Van Sant, Walter Salles, Eduardo Coutinho, Curtis
Hanson, Carlos Reichenbach e outros grandes nomes. E faço destaque especial,
nesse aprendizado, para os belos curtas que criou nesse meio-tempo,
incluindo preciosidades que acumulam cerca de 120 prêmios que incluem os
de festivais de Nova York, Copenhague e Cannes, relevo maior para os filmes
Vinil Verde e Recife Frio.
Durante o período de laboratório e ensaios, o elenco foi intensamente trabalhado
por ele, assistido por Leonardo Lacca e Amanda Gabriel. Impressionaram-
me o jogo perfeito entre rigor e liberdade absoluta para improvisos, bem
como a de conciliação – sem interferências – de técnicas bastante diversas para
o preparo das interpretações, como a minha, por exemplo, silenciosa, tranquila,
em contraposição à bastante conturbada, do grande ator Irandhir Santos, que
age como um pai de santo recebendo o espírito de seu personagem.
Primeira observação do diretor, depois do teste, foi sobre... o som ao redor:
– Ouça.
Marteladas insistentes, de todos os tons, formavam perspectiva sonora
igual a dos galos de João Cabral de Melo Neto: Recife é toda ela construção,
como João Pessoa. Agora mesmo ressoam pancadas de vários prédios que
crescem ao redor de minha casa, como em toda a cidade.
Claro que me atraía e me preocupava principalmente o plano-sequência
que me parece o mais simples e genial do filme: o do meu mergulho em Boa
Viagem, ao lado da tal placa sobre tubarões.
– Não se preocupe – Kleber me disse – temos uma conosco e vamos fincála
numa parte da praia sem perigo.
Levou-me levou até lá, numa noite. Na manhã seguinte, voltei ao ponto.
Ninguém tomando banho. Perguntei a razão a um vendedor de água de coco.
O perigo dos tubarões. “Mas não há placa nenhuma por aqui dizendo isso!”
– É, mas ninguém é doido de se arriscar, de Suape até Olinda.
Eu sentia, apesar disso, confiança ilimitada no Kleber. Mas... todo mundo,
inclusive eu, ele e a assistente de direção, Clara Linhart, estava tenso na
hora dessa filmagem. Quando a terminamos, foi um delírio. Ouvi um grito:
“Esse mama em onça!” E a cena está lá, dizendo tanto, mas tanto, mesmo,
W. J. Solha
262
do personagem, de um modo tão econômico, cinematográfico, que eu estaria
completamente arrasado se não a tivesse feito.
Filme feito, de novo o galo de João Cabral, mas o som, agora, ao redor do
mundo, a partir de Roterdã, depois Copenhague, Varsóvia, Rio, Salvador, São
Paulo – o The New York Times colocando a obra-prima de Kleber entre as dez
melhores realizações do ano – e eis a indicação dele para representar o país na
festa do Oscar etc, etc.
Tive a velasqueña suerte de encerrar minha “carreira de ator” em meu auge,
com esse – por enquanto, claro – auge kleberiano.
Cinema O som ao redor Cinema O som ao redor Reviewed by Clemildo Brunet on 3/12/2014 06:39:00 AM Rating: 5

Nenhum comentário

Recent Posts

Fashion