RUA DO CINEMA DE OUTRORA
Francisco Vieira |
Francisco
Vieira*
Caminhando na Jerônimo Rosado a rua
lembrou-me o passado sentindo-me criança outra vez. Nesse retroceder imaginário
vi-me na Rua do Cinema dos anos sessenta, como aprendi a chamar o pedacinho de
chão onde vivi parte da infância e adolescência.
Em que pese ser
Jerônimo Rosado o patrono, ilustre filho da terra, é conhecida por rua do
cinema, devido o Cine Lux, casa de espetáculos que ali funcionou durante
décadas se tornando uma referência histórica de Pombal. Seus moradores, muitos
já falecidos, formavam um grupo heterogêneo de pessoas das mais variadas
profissões, tais como: comerciantes, fazendeiros, alfaiate, farmacêutico,
enfermeiro, bancários, caminhoneiros, médicos, etc. E,
como
se não bastasse, havia ainda políticos que iam desde vereadores até prefeito e
deputado, além de delegado e militar com patente de capitão.
Restabelecendo as reminiscências, destaco alguns moradores que fizeram a
história da rua. Além de meu pai – Antonio Vieira - havia Maurício e Manoel
Bandeira, Seu Lelé, Zé Leopoldo, Biró Marques, Aureliano Ramalho, Dr. Atêncio e
Dr. Valmir, Posidônio Queiroga, Zé de Santa, Manoel Cassiano, Severino e
Sebastião Pedro, Cap. Massilon, Ramiro Cavalcante e outros. Digna de louvor a convivência
entre as famílias. A política da boa vizinhança prevalecia sobre qualquer
pretexto, onde o respeito, o diálogo e a boa educação asseguravam um clima de
paz e harmonia. Nem mesmo as divergências partidárias interferiam nas amizades.
A rua era o campo de ação. Um espaço
sem limite dividido com Pretinho – meu irmão – Ghandy e Nequinho, Kleber, Beto
e Gute, Joãozinho e Arereu Espalha, André e Francisquinho Queiroga, Branco e
Preto, Biú, Sandoval, Mané Galego, Jair, Toneco, Zé Piloto, Mané Maluco e
outros que compartilharam comigo momentos inesquecíveis.
Ainda vivos na memória, provam que a
amizade de infância nasce espontaneamente, cresce e se fortalece com o tempo. É
para a vida toda. A vida nos conduz por caminhos diversos, contudo, não destrói
a lembrança dos bons amigos. Se hoje separados, porém unidos, pelo bem que
ainda queremos. Vivos ou não, todos são saudades, lembranças.
Impulsionado pela saudade, ainda busco
uma explicação convincente para a morte de Ghandy, Zé Piloto, Gute, Arereu e
Joãozinho, Jair e Manoel Maluco que traídos pelo coração, atropelados por um
carro desgovernado, esmagados por um trem de ferro ou tragados pelas águas do
Poço da Panela, tiveram o mesmo fim: morte trágica e prematura. Infeliz
coincidência. Certamente esqueceram as recomendações: não confie no coração,
água não tem cabelo, quem corre cansa e pode não chegar. Aquele que parte mais
cedo é lembrado por mais tempo.
Rua do cinema, quem te viu e hoje te vê,
percebe que de lá até aqui muita coisa mudou. Hoje calçada, casas reformadas
nos padrões arquitetônicos modernos, dá sinais evidentes de desenvolvimento. Impossível
reconstitui-la, salvo na imaginação dos que ali viveram como personagens de sua
história.
Respeitando as mudanças, prefiro
lembrar a rua do cinema de terra batida, chão molhado e riachos correntes. Como
moleque travesso, pés no chão, sentir o ardor da terra quente que pisei no
passado. Também não resistir ao banho de chuva e percorrer ruas e avenidas, buscando
bicas jorrando água como cachoeiras.
Sem reclamar, correr o quarteirão inteiro,
brincando de preso, bang-bang, bate-bola, carrinho, garrafão, peinha queimada,
jogo de castanha, futebol de botão ou peteca. Ou, com Ghandy e Verneck - prefiro
chamar Nequinho - ouvir os jogos do Botafogo pelo rádio Phillips de sua casa. Com a mesma disposição resistir ao sol na fila
da matinê para ver filme faroeste, de Tarzan e chanchadas brasileiras.
Nesse profundo mar de lembranças, revivo
os passeios à tarde no lombo do carneiro “Belém”, animal de estimação de seu
Lelé. Impossível não apreciar a beleza de Eneida, Tânia de Aureliano, Bubú,
Marta Queiroz, Firmina Neta e outras vizinhas, todas normalistas do Colégio das
Freiras, que indo e vindo, com saias plissadas, atraiam a atenção até dos mais
displicentes. Impossível nos finais de tarde passar alheio ao charme e
elegância de D. Azuíla, curtindo na calçada de casa os últimos lançamentos
musicais que se misturavam ao som do Cine Lux.
Literalmente recordo a imagem representativa
de Seu Lelé. Vestido num terno escuro, por ele caprichosamente confeccionado,
dava ares de nobreza nos eventos político-sociais, enquanto a simplicidade não
lhe permitia qualquer ostentação.
Ainda ouço a voz do Cego Roseno
vendendo seus quitutes, tão saborosos quanto às bolachas petecas de Seu
Napoleão, o pão com creme de Toinho da Bodega e a cocada preta de Severino
Pedro.
Quem me dera, rever famílias
reunidas nas calçadas noite adentro, jogando conversa fora e esperando o vento
fresco do Aracati.
Mesmo educado com rigor, na base do
“escreveu não leu o pau comeu”, nada me impedia de quebrar vidraças, telhados e
perturbar o sossego de “Carne Assada” e Dona Petronila, mesmo sujeito a
castigos que me serviram de lições.
Queria resgatar velhos costumes,
entre os quais, o respeito dos mais jovens aos mais velhos. Se possível fosse reunir
os amigos de infância, relembrar o passado, dar gargalhadas e ressuscitar os já
falecidos. Como gostaria que o último capítulo do Cine Lux não fosse mais que um
filme de ficção. Também me encantar com as estórias de Joãozinho Espalha, que
de tão bem contadas pareciam verdadeiras.
A singularidade dessa rua é sua
grandeza. Impossível descrevê-la, pois sua história é infinita. Por tudo aqui
relatado – em síntese - e muito mais, se justifica meu orgulho e saudade da RUA
DO CINEMA DE OUTRORA.
Pombal, 19 de abril de
2014.
*Professor e Escritor
RUA DO CINEMA DE OUTRORA
Reviewed by Clemildo Brunet
on
4/20/2014 06:08:00 AM
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2 comentários
Professor, belíssimo texto. parabéns por relembrar nossos amigos e parentes que se forma tão prematuramente.
jeridvan
É sempre um prazer ler textos sobre nossa infância em Pombal. Sempre me emociono quando escrevem sobre esse belo recanto de nossa cidade, a rua do cinema. Por vezes, em férias, passo aí e me vem à memória grandes recordações, como estas tão bem contadas. Parabéns, professor.
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