Estórias que vivi...
Ignácio Tavares |
Ignácio
Tavares*
Era
uma tarde de um dia qualquer do ano de 1948. Conversávamos embaixo de uma
oiticica depois de tomarmos um café preparado por Júlio Gazo. A conversa girava
em torno do inverno que apresentava sinais de irregularidade, portanto havia
fortes indícios de que podia ocorrer mais um ano de seca.
Era o mês de março, havíamos
plantado feijão e milho, consorciados com o algodão, ainda uma pequena área de
arroz. As plantações antes vistosos, estavam estressados em razão da falta de
chuvas. Eu e Felix aproveitamos o verão para limpar todo plantio e
ainda
encostarmos terras no tronco do feijão, do arroz e do milho para preservar a
pouca umidade que ainda existia.
Júlio Gazo, bem próximo da nossa
área de cultivo estava a limpar a roça de Sá Ana, em regime de diária. Foi um
momento de exceção, pois, como bom canoeiro, a sua principal atividade era
tomar conta da canoa de mestre Álvaro em contrato de meação. O tempo esquentava
e nenhum sinal de chuva. Estávamos certos de que os quase quarenta dias que
havíamos trabalhado, infelizmente, estavam perdidos.
Nos primeiros dias de abril o céu
estava limpo, portanto nenhuma nuvem de chuva circulava no horizonte. Não havia
mais o que fazer, pois a roça estava toda limpa a espera de alguma chuva que
pudesse revitalizar as lavouras debilitadas pela ausência de chão molhado. Com
efeito, sem ter o que fazer, logo após o repasto do meio dia, sentamos, eu,
Felix e Júlio Gazo, na pedra do pau d’arco e ficamos a jogar conversa fora
Eis que aparece no nascente um
discreto nuvoeiro de capelo, nada de especial, principalmente quando a nossa
esperança era ver o nascente tomado por nuvoeiros, como costuma acontecer
quando inverno é regular. À tarde fomos embora pra casa na certeza de que seria
mais uma noite sem chuvas.
Na
hora da jantar Mãe falou que Aloisio Herculano tinha dito, na calçada da casa
de Cândido, que o diabo havia passado uma rodilha no céu, assim sendo, quem
estiver à espera chuva, babau, pode continuar a rezar pra São José. Mãe acrescentou:
ninguém deve brincar com as coisas de Deus, porque pode ser castigado. Ficamos
calados, porque no fundo do fundo acreditávamos que Aloisio estava certo.
O discreto nevoeiro que despontou no
leste da cidade começou a subir e a ocupar todo nascente. Lá pra madrugada
desabou uma chuva que até então nunca tinha presenciado na minha vida de jovem
trabalhador rural. Relâmpagos riscavam os céus e trovões assustadores
rebombavam em todas as direções. Parecia que o apocalipse seria naquela noite.
Isso mesmo foi algo assustador,
pois, antes se rezava pra chuva chegar, mas, diante do volume d’água que caia
Mãe começou a rezar pra chuva parar. Santa Bárbara e São Jerônimo eram a quem
recorria para ver se o temporal passava. O riacho que passava por trás da nossa
casa, justo onde hoje é a Jeronimo Rosado, transbordou e nos obrigou passar
parte da noite a tirar água de dentro de casa.
Mais à frente, na
casa de Aloisio Herculano o estrago foi maior. Dona Veriana gritava por socorro
porque não havia como enfrentar as águas do riacho que entrou pelo portão
traseiro do muro, invadiu a casa e saiu pela frente carregando tudo que havia
no caminho. Corremos pra lá, realmente a situação era de Deus nos acuda. Aloisio
sentado em cima de uma mesa parecia rezar e pedir perdão pela besteira que
falou, quando disse, na calçada de Cândido, que o diabo havia passado uma
rodilha no céu. A chuva passou, mas o estrago ficou. Aloisio passou o resto da
noite sem dormir pensando como se apresentar diante dos amigos depois da infeliz
previsão que fez sobre a possibilidade de chuvas na noite anterior. O dia
estava pra amanhecer.
Mais ou menos às quatro da manhã
escutou-se o grito de Júlio Gazo: “povo da Rua de Baixo saia de suas casas
porque o Piancó vai invadir toda área”!! Falou certo, pois quando amanheceu o
dia o rio estava dentro da cidade. A chuva foi geral numa época em que não
havia a barragem de Mãe D’água, desse modo, toda água que caiu a montante da
região desceu na calha do rio, inundando as áreas ribeirinhas rio abaixo.
O dia amanhecido o assunto era a
chuva da noite anterior. O que Aloisio previu aconteceu. Na calçada da casa de
Cândido passou a ser o centro das atenções. Cândido, Marcionilo e Joãozinho de
Senhor riam em razão das suas precipitadas previsões. Cada um tinha a sua
estória pra contar quase sempre sobre a invasão das águas, trovões
assustadores, além do surgimento de goteiras em razão do excesso d’águas que
corriam no telhado. Mesmo assim a satisfação foi geral, uma vez que todos que
tinham plantações estavam certos que as lavouras estavam seguras.
Foi um grande momento o inverno de
1948. O mês de abril foi marcado pela retomada da estação invernosa. Mas, para
nós não foi tão bom assim, pois no dia 19 do mesmo mês o nosso pai faleceu
quando estava em franca recuperação de um AVC que o cometera. Passamos alguns
dias tomados pela tristeza, mas retomamos nossa atividade impulsionada pela
firmeza da nossa Mãe.
Apesar
dos pesares, foi um ano de muita fartura no qual colhemos em quantidades,
feijão, milho, arroz e de quebra algumas arrobas de algodão que foram
suficientes para pagarmos as contas pendentes e ainda sobrou alguns trocados
para comprar algumas mudas de roupas, calçados, para nos apresentar com certa lordesa
por ocasião da festa do rosário.
Foi assim que enfrentamos os
momentos mais difíceis de nossa vida, com muito trabalho e perseverança, não
obstante as incertezas do tempo, sob o comando de uma Mãe que parecia uma
maestrina a reger uma orquestra bem afinada composta por sete filhos. Cada um
tinha o seu papel a desempenhar para que tudo desse certo. Felizmente tudo deu
certo porque vencemos todos os obstáculos e com o passar do tempo todos tomaram
o seu caminho.
João
Pessoa, 28 de Maio de 2014.
*Economista e
Escritor.
Estórias que vivi...
Reviewed by Clemildo Brunet
on
5/28/2014 08:03:00 AM
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