DE ONDE ELES VIERAM?
Ignácio Tavares |
Ignácio
Tavares*
A cidade de Pombal sempre acolheu de
braços abertos pessoas que chegaram para passar alguns dias, mas terminaram por
ficar para sempre. A imanência da sedutora cidade explica-se pelo modo
receptivo com o qual o seu povo acolhe a todos que se propõem a tornar-se cidadão
pombalense.
Nesta maravilhosa e encantadora terra há
lugar para todos que a procuram para fixar residência por uma simples razão,
qual seja - aquele que passar pelo menos
um dia e
Das pessoas que fixaram residência em
Pombal, quero falar apenas sobre duas. São criaturas sem expressões sociais e
de origens desconhecidas. Outras criaturas já passaram por aqui na mesma
situação, mas essas duas são especiais. Refiro-me a Luzia Carne Assada e Mané
Doido.
Luzia Carne Assada chegou a Pombal não
sei quando, não sei de onde. Era de compleição física acaboclada, estatura
mediana, falava pouco, era reticente quando alguém perguntava sobre a sua
origem. Não sei dizer a razão do apelido ¨ Luzia Carne Assada¨. Era devota de
Nossa Senhora, por isso foi aceita, sem nenhuma restrição, como membro da
Irmandade do Coração de Jesus.
Vivia de esmolas. Nunca aceitava
qualquer doação acima de um cruzeiro. Costumava dizer que se alguém lhe
oferecesse algo acima desse valor era porque estava com outras intenções. Talvez
tivesse lá suas razões.
Era casta, puritana, morava sozinha numa
casa no inicio da Rua da Cruz. Criava gatos, galinhas entre outros pequenos
animais domésticos. O seu hábito de conviver, a muito gosto, cercada de
pequenos animais nos levava a crer que era de origem rural.
Ela tinha um galo que era famoso. Certa
noite a gente estava a beber na casa de Salatiel Marques e lá por volta da meia
noite, resolvemos pegar o galo de Carne Assada. Tudo certo, a operação foi
perfeita. Só houve um problema: o galo passou mais de duas horas no fogo,
amanheceu o dia e não cozinhou.
Diante do inesperado acontecido, alguém
sugeriu que o galo tinha a mesma idade dela, por isso encruou e não cozinhou.
Constrangidos, depois de uma pequena discussão, resolvemos pagar o galo, só que
o pagamento tinha que ser feito aos poucos, porque ela não aceitava doação
acima de um cruzeiro.
Assim foi feito. Calculamos o valor do animal,
concluímos que valia no máximo vinte e cinco cruzeiros. Assim sendo, a dívida foi
quitada de cruzeiro em cruzeiro. Vez por outra, a gente a provocava ao
perguntar sobre o galo.
A resposta era um verdadeiro lamento,
pois o galo pra ela era como se fosse um filho. Como religiosa que era nunca
perdeu a missa das cinco da manhã, porque o galo, exatamente às quatro e meia
começava a cantar. Era o despertador que a acordava na hora certa para que não
perdesse a missa celebrada por Padre Oriel no primeiro horário da manhã.
Não sei como terminou o ciclo de Luzia
Carne Assada em Pombal. Do jeito que chegou partiu. Partiu sim pra outra
dimensão, porque o corpo de Luzia jaz em um canto qualquer do cemitério velho.
Como sempre numa cova rasa sem nenhuma inscrição que lembre que um dia alguém
de origem humilde, sem origem, sem destino, habitou entre nós.
Quanto a Mané Doido, a história se
repete. Chegou a Pombal ninguém sabe quando, nem tampouco de onde. Mané era
morador de rua. Qualquer marquise servia-lhe de teto. Na época de chuva, ele
costumava dormir no terraço da casa de seu Zezinho da Banca, pai do saudoso
magro Zequinha.
Não era de pedir nada a ninguém. Pedia
sim, com os olhos. Aproximava-se das bancas de frutas, de quem quer que fosse,
ficava ali de braços cruzados, até que alguém entendesse o seu olhar pidão e
lhe desse algumas bananas para primeira refeição da manhã. Não agradecia,
apenas esboçava um leve sorriso e se retirava como se nada tivesse acontecido.
O seu grande amigo era Cabina,
proprietário do restaurante Manaíra, localizado à Rua Coronel José Fernandes,
em frente ao mercado central. Quando Cabina não estava no restaurante a sua esposa
Cecinha era quem socorria Mané. Almoçava, a noitinha recebia um suculento prato
de sopa acompanhado de um pão, o que lhe era suficiente para mitigar a fome do
dia.
Mané vez por outro mostrava o seu lado
desconhecido. Certa noite chega ao restaurante Manaíra para o repasto noturno. Sentiu a ausência de Cecinha,
que sempre ficava sentada fora do balcão a fazer às vezes de caixa.
Neste dia, quem estava fora era Cabina e
Cecinha estava sentada no outro lado do balcão. Mané perguntou: “seu Cabina
cadê dona Cecinha”? Cabina, como sempre debochado e bonachão respondeu: “ah,
Mané eu não lhe conto, houve uma tragédia na minha família”.
Mané não entendeu bem o que Cabina
estava a falar. Perguntou: “o que é isso seu Cabina”? Foi o seguinte Mané: “passou
aqui um viajante e Cecinha fugiu com ele”. Indagou Mané: “ô quê seu Cabina,
dona Cecinha fez isso”? Isso mesmo Mané, respondeu Cabina. Cecinha no outro
lado do balcão a escutar toda conversa.
Mané ficou irrequieto, tomado pela
dúvida. Mesmo assim resolveu opinar sobre o caso da suposta fuga de Cecinha e
assim falou: “seu Cabina eu nunca lhe disse nada pra não lhe magoar”. Magoar
como Mané? Perguntou Cabina. Mané ficou sem jeito, querendo expressar o seu
pensamento, mas sem coragem com medo de uma reação de Cabina.
O ambiente ficou confuso pra Mané, mas
mesmo assim resolveu falar o que sempre pensou de Cecinha: “olhe aqui seu
Cabina, vou lhe falar a verdade. Eu sempre achei dona Cecinha com uma cara de
quenga da moléstia. Não sei se o senhor concorda comigo, não é”?
Cecinha, que estava por trás do balcão a
escutar toda história, levantou-se, interveio: “voce não é besta não Mané”?
Ora, quando Mané viu que Cecinha estava presente, sentada no outro lado do
balcão, a escutar tudo, saiu em desabada, sequer esperou pelo prato de sopa.
Mané passou muito tempo sem entrar no
restaurante Manaira. Cabina todo dia preparava o prato e mandava pra ele. Certo
dia Cecinha encontrou-se com ele na porta do açougue e fez as pazes. Pronto
agora tudo está resolvido. Você pode voltar a comer lá no restaurante, viu?
Mas, Mané nunca mais foi o mesmo. Jamais
teve coragem de olhar pra Cecinha. Sempre que os dois conversavam, ele volvia o
olhar para o chão. Quando Cabina queria brincar com ele, não havia
receptividade, pois calado estava, calado ficava.
Mané desapareceu para sempre. Morreu? Ninguém
sabe, ninguém viu. Talvez tenha se encantado, como disse o saudoso Guimarães
Rosa: “ninguém morre, encanta-se”. Mané encantou-se?
Quem sabe, ao desencantar-se, talvez
tenha se transformado numa libélula a vagar mundo afora, na busca de um lar, de
uma família, coisa que nunca teve enquanto viveu a perambular pelo planeta
terra.
João
Pessoa 16 de Julho de 2015
*Economista e
Escritor
DE ONDE ELES VIERAM?
Reviewed by Clemildo Brunet
on
7/16/2015 05:03:00 PM
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