A BOTIJA
Severino Coelho Viana |
Por
Severino Coelho Viana*
Em Santarém, naquela época, era voz
corrente que as pessoas abastadas que morriam, temendo a invasão repentina dos
cangaceiros, deixavam baús enterrados e cheios de ouro e prata. Esses tesouros
encantados eram conhecidos popularmente como botija. E a maneira mais fácil e
mais cômoda para tornar-se um ricaço, bastava rezar para as treze almas do
purgatório, recebia, em sonho, o anúncio de uma botija soterrada por um
falecido rico.
Entre verdades e mentiras as estórias
cavernosas andavam de boca a boca. Uns acreditavam, outros viam como coisa do
demônio, e
O namoro de Barandão e Nana transcorria
na maior tranquilidade, pois eles já tinham se acostumado, vez por outra, com
uma astúcia levantada por Maria Dolores.
Barandão, como sempre, que trazia
consigo o estigma da obsessão pela riqueza, e como já pensava no casório,
aumentou mais ainda a sua vontade de encher os bolsos do papel valoroso.
Pensava ter uma casa própria, lotada de mobília, comprar um automóvel e
estabelecer-se comercialmente. Queria dar à sua família um padrão de riqueza.
Tudo ele imaginava de maneira grandiosa.
Certo dia, numa conversa de namoro, Nana
relatou um fato que estava acontecendo na sua casa:
___Barandão, eu quero lhe contar um segredo.
Se esse segredo for revelado, por quem quer que seja, bota-se tudo a perder. Se
papai souber que fui eu quem revelou, ele me mata.
___Então, já sei que a coisa é séria!
___Seríssima. Não é coisa deste mundo.
___Conte-me, pelo amor de Deus, estou
com o coração em palpitação.
___Papai, na última quarta-feira, sonhou
com a viúva de João Piloro, que completou um ano do seu falecimento. No sonho
ela aparece de vestido azul celeste, cabelos compridos bem penteados, demonstra
um sorriso de simplicidade, faz um aceno de mão para papai. Papai segue o corpo
em levitação e ruma na estrada da serra do Molambo. Quando se aproxima da
barragem do açude, do lado esquerdo da oiticica grande, no pé de seu tronco,
mostra um jarro grande, pintado de azul marinho e ornado de flores brancas. Na
boca do jarro tem um prato de inox, apoiado por um garfo e uma faca de prata,
formando o símbolo de uma cruz. Depois de mostrar esses sinais, diz a seguinte
mensagem:
___José Legado, este é o meu presente
que ofereço a você e sua filha Nana. Depois de deixar a mensagem, ela sobe numa
nuvem preta. Parece ser uma alma penada do purgatório.
Barandão assustou-se e arregalou os
olhos:
___Nana, essa conversa me arrepiou os
cabelos, mas, pelo outro lado eu acho muito empolgante arrancar uma botija. Eu
admirava muito a mulher de João Piloro. Ela era minha amiga particular, e eu
lhe tinha grande consideração. Não sei qual o motivo excluiu o meu nome dos
homenageados com a oferenda, indicando o nome de Nana e seu pai.
___Barandão, nós estamos namorando,
certamente, as coisas do além entenderam que você será beneficiado
indiretamente.
___Eu vou falar com seu pai, você disse
uma coisa certa, não era preciso relacionar o nome de todas as pessoas que vão
ficar ricas. Amanhã converso com seu pai, eu também vou arrancar a botija.
___Você não entendeu que a minha
conversa foi a revelação de um segredo. Isto é um assunto de namoro,
finalmente, você será o meu marido.
___Por isso mesmo. Seu pai tem que ficar
sabendo que vou participar da comitiva de arrancação.
___Até o momento, eu e meu pai sabemos.
Nem a minha mãe está sabendo!
___Ela também deve ser sabedora. A sua
mãe tem reza forte e sabe rezar o terço apressado. Já seu pai, que é um pouco
ateu, talvez, termine botando a boiada a perder.
___Se for conversar com papai, uma vez
que seu nome não foi citado, a alma não venha mais confirmar os outros dois
sonhos.
___É até bom que eu converse antes dos
dois sonhos. Se a alma aparecer em sonho novamente, confirma a minha
participação.
Barandão, depois do namoro, não
conseguiu dormir, passou a noite toda de olhos grelados, olhava direto para a
cumeeira da casa, chegando, inclusive, a ter alucinações com a alma da mulher
de João Piloro. De repente, passavam as alucinações, os seus pensamentos
voltavam à realidade e, já imaginando a sua situação depois de tornar-se um
homem rico, divagava a tal ponto que chegava a pensar na compra de um avião e
morar em São Paulo. Por último, como vivia aqueles momentos de loucura, pedia
perdão a todas as almas que havia suplicado que lhe aparecessem, em sonho, e
lhe presenteassem com uma botija. Ele não foi merecedor direto, mas a sua
noiva, os céus ouviram as suas súplicas. Depois disso adormeceu.
O dia esperado, Barandão acordou com uma
disposição de fera ferida e nem parecia ter passado a noite em pesadelo. Ora, o
desejo de ser tico falava mais forte. Saiu apressado para tomar café na casa do
sogro.
___Hoje, eu acordei muito cedo, seu Zé
Legado. Vou fazer companhia até o roçado.
___Você é um homem rico, não gosta de
roça.
___Eu estou pensando em comprar alguns
hectares de terra.
___É um bom investimento. Eu sou um
homem da terra. Eu amo a terra, lugar que será a minha última morada.
Barandão se agoniava, não queria rodeio,
o assunto era a botija. Então, pegou o verbo:
___Seu José Legado, entre namorados não
há segredos, principalmente um namoro que está tudo assegurado, como o meu e
Nana. Queria conversar com o senhor na sombra do marizeiro. Ontem, à noite, eu
e Nana conversávamos, então, ela me contou e pediu que eu guardasse em segredo
debaixo de sete capas. Foi sobre o sonho que o senhor teve com a mulher de João
Piloro. Quando fui dormir, eu tive uma ideia, portanto, vim combinar com o meu
sogro. Veja bem, o senhor é um pouco ateu, talvez, não agrade as coisas lá de
cima. Por outro lado, a sua mulher, minha futura sogra, é uma beata, só vive na
igreja e sabe rezar o terço apressado. A alma ofereceu a botija ao senhor e a
Nana. Solução: - no dia da arrancação, o senhor leva a sua mulher, que com suas
rezas fortes, afugenta as forças demoníacas. Eu, como sou uma pessoa destemida,
vou escavar o buraco, por ser o futuro esposo de Nana. Depois de arrancada a
mofunfa, ninguém vai saber, o assunto fica entre família.
___Barandão, só tem um detalhe, eu tive
o primeiro sonho, faltam os dois de confirmação. Se a alma não aceitar a sua
presença e de minha mulher, a botija desaparece, vira cinzas.
___Mas, se esta alma repetir os dois
sonhos seguintes é porque o Divino Deus, Todo Poderoso, acatou o nosso apelo de
humildade.
___Eu vou conversar com a minha mulher,
ela ainda está inocente. Espero que você não comente com mais ninguém.
A mulher de Zé Legado, Ana Legado, ficou
arredia com a conversa que teve, mas não podia deixar de atender ao pedido do
marido, e que também a sua participação se resumia em puxar o terço apressado.
As duas semanas seguintes se sucederam e
os dois sonhos se repetiram, nos termos da crendice popular.
No dia combinado, rumavam em busca da
botija, pela estrada da serra do Molambo, Zé Legado, Ana Legado, Nana e
Barandão. Zé Legado levava um tamborete amarrado na cintura e uma picareta
pendurada nos ombros; Ana Legado, com as suas mãos trêmulas, vinha com a cabeça
coberta por uma mantilha preta e um terço segurado nas mãos; Nana trazia uma
caixa de velas e o fósforo; enquanto Barandão estava armado de uma espingarda
bate-bucha e um revólver calibre trinta e oito, com a fúria e a ganância de
pegar na botija. Todos caminhavam com muita tranquilidade, quando surgiu de
inopino, um burro bravio que corria desembestado, trazendo dois caçuás vazios,
que faziam um barulho carregado de lataria, passando pelo meio da vereda,
deixou os transeuntes atordoados. Acabou a tranquilidade, começaram a aparecer
os primeiros sinais.
Meia noite, debaixo da oiticica grande,
do lado esquerdo do açude, com todas as ferramentas afinadas, Ana Legado
ajoelhou-se e pediu para que todos rezassem o credo. Zé Legado perguntou:
___Barandão, você está bem municiado?
___Não se preocupe, se aparecer algum
intrometido aqui, não conto conversa e mando bala. Afora nós, com ninguém pode
ser dividida esta riqueza. A alma apenada permitiu que fosse somente rachada
com nós – os quatro.
___Quando ela apareceu indicou somente o
meu nome e o de Nana.
___Meu sogro, não me venha fazer
confusão no rateio. Se a alma penada não quisesse que nós participássemos não
teria mais aparecido nos sonhos.
___Tudo bem, não está mais aqui quem
falou. Vamos iniciar a escavação. Limpe o tronco da oiticica, que eu vou mandar
a picareta.
As folhas da oiticica começaram a
balançar e um vento fino a soprar que vinha do nascente arrepiando os cabelos
de todos, menos os de Barandão, que em nome da fortuna, não temia nem aos
castigos de Deus. Um distante assobio promana do cume da serra do Molambo, como
se fosse um ente desconhecido implorando piedade e, ao mesmo tempo, que eles
faziam a escavação, o ruído demonstrava um ruído de alívio, como se tivesse
deixando o sofrimento. Aparece a figura de um bode preto no meio do capinzal.
As pernas viram um bambolê. Barandão tanto tirava a terra escavada que o suor
corria da testa e a camisa estava toda molhada. Da equipe foi o único que não
viu o bode preto.
Sem mais nem menos, uma chuva de folhas
secas caiu da oiticica, ocasião que todos perderam o controle emocional.
Barandão enraiveceu:
___Nem o satanás, nem coisa do outro
mundo evitam que eu arranque esta botija. Pode continuar a assobiação e caindo
folhas secas, não aterrem o buraco, que esse ouro é meu, e a alma está livre do
purgatório.
Ana Legado, que tirava o terço
apressado, tremia mais que vara de marmeleiro. As mãos quase não seguravam mais
as contas do terço. Os beiços suspiravam as palavras e todo tipo de marmota do
outro mundo aparecia na sua visão.
Nana tinha acendido as velas e rezava
cabisbaixa sem tirar o olho de Barandão, que trabalhava escavando o buraco
feito um trator.
Cada vez mais o buraco se aprofundava e
não surgia nenhum sinal do talher de prata.
Zé Legado já suava muito e falou:
___Nana coloque um pouco de café quente
no meu copo de barro, pois estou sentindo uma frieira no meu corpo, igualzinho
ao início do sonho.
Barandão alegrou-se:
___Então, meu sogro, isto é um sinal
muito bom, estamos mais perto do que longe, vamos escavar mais um pouco, e logo
vão aparecer os sinais da botija, conforme foi visto no sonho. Dessa hora em
diante, seremos os homens mais ricos de Santarém.
Depois de tomar o café, Zé Legado
recobrou as energias e recomeçou a observar a escavação.
Pediu a picareta e iniciou umas batidas
vagarosas no solo, que parecia ter ficado mais rochoso, enquanto seus ombros
suportavam o peso de uma força estranha.
Essa situação estranha deixou o
escavador atormentado, pois não entendia o que estava se passando, se era
realidade vivida ou fruto de sua imaginação, sentindo as suas forças se
debilitarem. De repente o escavador gritou:
___Barandão, estou perdendo as minhas
forças, o terreno endureceu, a picareta não perfura com profundidade.
___Meu sogro, não se preocupe, este
sinal é que estamos chegando perto da botija. O demônio está começando a atuar.
___Não me fale desse jeito. Não vê que
todo mundo está escapelando de medo...
___Eu mesmo não. Ainda não senti nada de
estranho. Só acredito na força poderosa de Deus.
Um vento fino tomou conta do ambiente.
As folhas da oiticica sopravam com a ventania. Um ruído amedrontador nascia da
serra do Molambo, que fazia arrepiar os cabelos. Os pés de marmeleiros se
mexiam assustadoramente. As águas do açude se remexiam em rebordosa. As velas
já não clareavam mais o chão. Somente os olhos de Barandão nasciam a iluminação
da riqueza. A hora era chegada, as cartas estavam na mesa. Ou era tudo ou nada!
Zé Legado baixou a picareta com firmeza
no solo, ouviram um tinir, como se fosse o atrito de dois instrumentos de
ferro. Todos se alertaram. Zé Legado parou de furar com a picareta, enquanto
que Barandão começou a escavação manual, ajudado por duas catembas de coco,
quando viu um garfo e uma faca de prata, em forma de cruz, não resistiu:
___Zé Legado, olhe o sinal da botija.
Pegou o talher.
Nessa hora que todos esperavam ver a
fortuna, um sapo agigantado pulou nos peitos de Ana Legado, que balbuciava um
terço apressado e, como tinha medo de sapo, desmaiou.
Nana quando viu a situação saiu correndo
em busca de casa, não querendo mais saber de conversa com botija.
Zé Legado e Barandão foram socorrer Ana
Legado. Passaram alguns minutos para recobrar os sentidos, sem saber como tudo
aquilo tinha acontecido, acordando completamente desnorteada.
Esses rápidos minutos fizeram Barandão
esquecer de ser rico. Na verdade, a saúde da futura sogra era mais importante.
Mas, logo se lembrou: - e a botija? –
Que tamanha decepção, Barandão e Zé
Legado pensavam encontrar uma fortuna: moedas de ouro e prata, colares e anéis
de ouro, talheres de prata e algumas pedra de rubi e diamante, quando Barandão
cresceu os olhos, não avistou nem o garfo nem a faca de prata que tinha
segurado antes do sapo pular de dentro do baú. Tudo tinha se transformado em
carvão.
Com a arrancada da botija, Nana conheceu
melhor o caráter e a personalidade do namorado.
E seu sogro, Zé Legado, que havia se
aproximado do futuro genro, depois de perceber que ia continuar na miséria, já
que nenhuma outra alma penada do purgatório iria fazer um sonho de oferecimento,
tascou a língua em Barandão:
___Só ficamos pobres por causa do olho
grande de Barandão! O seu olhar esmagou a nossa fortuna!
Este
texto foi retirado do livro “AMBIÇÃO SEM LIMITE”, de autoria do escritor:
SEVERINO COELHO VIANA.
João
Pessoa, 30 de agosto de 2016.
*Escritor
pombalense e Promotor de Justiça em João Pessoa PB
scoelho@globo.com
A BOTIJA
Reviewed by Clemildo Brunet
on
8/29/2016 08:37:00 AM
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