AS COISAS DE ONTEM
Ignácio Tavares |
Ignácio
Tavares*
Lembro-me que, quando criança estava
dividida entre o sítio da minha avó Ana e a cidade. Confesso que não nutria o
mínimo querer pela cidade, pois, campo fascinava-me sob todos os aspectos. A
paixão que sentia pelo ambiente natural da roça da minha avó era algo
inexplicável para um irrequieto rebento de apenas dez anos de idade.
Caminhar cedinho, pés descalços, sobre o
tapete verde de relva orvalhada fazia-me bem. Às vezes ponho-me a sonhar: ah se
me fosse dada uma oportunidade para recomeçar tudo de novo! Ah, quanta
felicidade se me fosse permitido voltar àquela vida, depois de tanto tempo
afastado daquele ambiente que me fez feliz enquanto criança.
Hoje, depois de tantos anos passados
ainda vivo a lembrar os utópicos sonhos de uma criança ingênua, cujo desejo
maior era viver e
Infelizmente o tempo não retroage. Nada
contra, pois, guardo dentro de mim as inapagáveis lembranças que levam
comparar-me a um triste passarinho que vive a cantar as saudades de um antigo
ninho que outrora fora seu.
Tem jeito não. É impossível esquecer
aqueles bons momentos da minha vida. Chego às vezes a rogar que se apaguem da
minha memória os melhores momentos da minha infância antes que o tempo me
devore. Tempo! Tempo! Rendo-me a ti, mas, convicto de que no espaço que me
deste, como ente racional terreno, vivi intensamente, sem medo de ser feliz ou
infeliz.
Enquanto menino de roça a não me
preocupava com a clássica definição de felicidade. Mas se alguém me perguntasse
o que era felicidade, com certeza diria: ser feliz é viver intensamente a vida,
em perfeita harmonia com a diversidade que a natureza nos oferece, sem a menor
intenção de destruí-la. Hoje se chama isso sustentabilidade ambiental.
Foi neste ambiente que vivi a minha infância.
Ao meu redor tudo era alegria, tudo era belo. Encantava-me o canto do galo
campina, o gorjeio do sabiá, o canto ritmado das casacas de couro, o canto
intermitente do canário da terra, entre outros cantos e gorjeios de aves
diversas.
A familiaridade com o ambiente natural
permitia-me conhecer as espécies de aves pelos seus respectivos cantos. Quanto
aos animais, da mesma forma, os conhecia segundo as espécies, em razão da nossa
longa convivência pacífica no mesmo ambiente natural no dia a dia quando envolvido
nas lides rurais.
Temia as raposas porque Nicodemos dizia
que elas tinham uma mecha de cabelo do diabo. Quando as via arrepiava-me todo.
Às vezes benzia-me com medo de que a tal mecha transformasse aquele temido
animal num monstro chifrudo, fedorento a enxofre a soltar chamas pelas narinas,
qual um mítico dragão chinês.
Fazia questão de repassar essas estórias
medrosas ao primo Benigno, companheiro de andanças pelas redondezas dos poços
do araçá, panela, redondo e cambôa. Éramos chegados a uma pescaria quando havia
apartamento do rio, em razão do término do período invernoso.
Levava uma vida mansa, de trabalho,
convivência e contemplação. Durante o dia muito trabalho, a noite conversas
fiadas no lajedo, antes de me recolher a rede. Dormia e acordava ao som do
barulho da cachoeira do poço da panela, minha fiel despertadora.
Acordava cedinho pegava o anzol, a caixa
de isca, descia pra o rio, em pouco tempo enchia o embornal de cangatis, piaus,
sovelas, o que garantia o almoço do dia para mim e o mano Felix. Com certeza
vivíamos num ambiente de fartura.
Nesse tempo, não havia o uso
indiscriminado de agrotóxicos, por conseguinte não havia envenenamento do solo,
dos vegetais, bem como dos mananciais. Por isso, a pesca e a caça eram
abundantes.
O tempo passava rápido, pra minha
alegria, porque dia após dia estava a repetir as mesmas façanhas. Tudo o que se
movesse ao meu redor era motivo de curiosidade. Qualquer movimento chamava-me
atenção. Até mesmo um pequenino beija-flor que estava sugar o néctar de uma
majestosa flor de maracujá silvestre era motivo de alegria e admiração.
A minha vida, enquanto criança campesina
foi um poema que jamais ousei escrever. Infelizmente no meu batismo não recebi
o carisma da arte poética, por isso, nunca aprendi a fazer versos. Em razão da
ausência do dom poético, sinto-me incapacitado para produzir o tão desejado
poema.
Mas, mesmo a viver a frustração de poeta
não realizado, continuo a sonhar com a construção desse poema. É isso mesmo,
ainda hoje sou prisioneiro de cenários reais que não saem de dentro de mim. A
coisa torna-se mais incitante porque a cada dia estou a sonhar, em cores vivas,
com aquele fascinante lugar que me proporcionou momentos marcantes da minha
vida.
Quando faço uma leitura desse tempo, um
filme em preto e branco faz-me lembrar não só da velha casa de farinha, meu
refúgio predileto, bem como, faz-me ver todas as pessoas simples com as quais
convivi. São doces lembranças que provocam tremelico no meu fragilizado
coração.
Repito: convivi com pessoas anônimas do
povo. Por exemplo, Júlio Gazo, Dedeca, Vital, Zé Jó, Nicodemos, Lolinha, Preta,
ambas casadas com Nicodemos. Coisas dos relacionamentos amorosos de antigamente
que ainda acontecem nos dias de hoje.
Nas noites frias, sentados no lajedo em
frente à casa de farinha, todos tinham suas estórias fantasiosas pra contar.
Enfim, eram pescadores. Nicodemos costumava falar que havia visto a Mãe D’água
no poço da Cambôa, numa noite enluarada, justo num momento de uma solitária
pescaria. Ao descrever os traços físicos da deusa das águas, Nicodemos ficava
circunspecto, como se estivesse a vê-la, no exato momento que estava a falar.
Vital, contava também suas estórias. Era
um exímio pescador. Gostava de lancear sua tarrafa de malha fina nas águas
barrentas do Piancó. Só não gostava de caminhar à noite pelas veredas do riacho
do bode com medo de ser atormentado, mais uma vez, pelas almas penadas do
lugar. Era homem de muitas estórias vividas nas ribeirinhas do Piancó.
Vez por outra Vital contava que numa
noite de pescaria fora intimidado por um Caboclo D’água, pois a área onde
estava a pescar era território exclusivo do incômodo cidadão. Foi avisado para
não pescar naquele lugar, pois, se por acaso continuasse as represálias seriam
terríveis, quais sejam: a apreensão da tarrafa ou rede de pesca, seguido de uma
pisa com galhos de urtiga branca envolvendo as partes intimas do corpo. Era
assim mesmo, cada um tinha sua estória pra contar.
De tanto escutá-los, por muito tempo, eu
e o primo Benigno de Cândido, evitávamos descer rio abaixo, a pescar de landuá,
com medo de sermos pegos pelo Caboclo D’água. No nosso imaginário,
acreditávamos que o Caboclo era uma figura robusta, musculosa, dentes longos e
afiados, de poucas palavras, abusado, sobretudo agressivo, conforme os relatos
de Vital e Nicodemos.
Repito: cada um tinha sua estória pra
contar. Zé Jó, de forma dramática, com gesticulações teatrais contava que
brigou quatro horas de relógio com um insolente guará que costumava roubar seus
peixes. Essa briga só terminou porque o Guará se acovardou, pediu penico, e
saiu mansamente, com o rabo entre as pernas, sem ao menos olhar para trás.
Júlio Gazo, dizia ter visto uma cobra de
veado, a vagar sobre as águas do Piancó, que no mínimo tinha uns dez metros de
comprimento. Era uma cobra capaz de engolir um borrego sem pestanejar. Podia
também laçar um pescador desavisado e quebrar todos os ossos e comê-lo aos
poucos.
Haja medo diante de tantas estórias. Eu
e o primo Benigno quando estávamos a pescar, alguém tinha que ficar de prontidão
a observar a qualquer sinal da presença de algumas dessas figuras estranhas.
Por isso o medo limitava nossas caminhadas ao longo das ribeirinhas do Piancó.
Dedeca contava que na roça de Sinhá Ana,
ao redor da casa de farinha, costumava aparecer três almas penadas cada uma a
carregar uma lamparina acesa na cabeça. Outras estórias de secas, cangaceiros,
eram assunto costumeiro nas belas noites de céu estrelado, todos sentados no
lajedo em frente a casa de farinha.
Cresci ouvindo essas estórias. Esquecê-las,
não há como. Foi um bom momento na minha vida de criança cujas lembranças
guardo até hoje. Daria tudo para voltar a ser aquele menino de roça, longe das
tribulações dos dias de hoje em razão dos acontecimentos desagradáveis do mundo
contemporâneo.
Tudo que aprendi na vida começou no
campo. A rigor nunca me afastei dele. Na hora de escolher um curso de alta
especialização, preferi economia rural. Ainda hoje respiro agricultura por
todos os poros.
Só há uma diferença: na infância
respirava agricultura no seu ambiente natural, hoje respiro a distância, posto
que, vez por outra, tenho que rodar cerca de 380 quilômetros para ver de perto
o pedaço de chão que tanta alegria me proporcionou justo no alvorecer da minha
vida. É obvio que nos últimos tempos muita coisa mudou, pois o que era sonho,
alegria, esmaeceu, pois, hoje, é um tremendo pesadelo. O sonho acabou.
Mesmo assim, em resumo posso dizer: saí
da roça pra morar em terras distantes, entretanto, apesar dos tormentos, a roça
de Ana, minha saudosa avó, jamais saiu de dentro de mim.
*Economista e
Escritor pombalense
AS COISAS DE ONTEM
Reviewed by Clemildo Brunet
on
4/24/2017 07:11:00 PM
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