AS DUAS POMBAL QUE “FORAM” À LUA EM 20 DE JULHO DE 1969.
Jerdivan
Nobrega de Araújo
Eu ainda
não havia chegado aos nove anos de idade no dia 20 de julho de1969, quando cruzava
aquelas ruas por onde caminhavam os moradores da Rua de Baixo, por entre o lixo
e a lama que corria pelas artérias descaçadas da minha infância.
Eram as mesmas ruas pelas
quais, nas tardes de chuva torrenciais, nós, moleques buscávamos as biqueiras para
tomar banho, jogar futebol com bola de meia ou simplesmente correr sem rumo,
pés descalços e descamisados, como crianças criadas ao léu, feito o Melão de
São Caetano nas cercas do corredor do rio e os Camapus nascidos nos monturos por
trás do posto de assistência ás famílias necessitadas.
Eram também as ruas por onde
os operários da “Usina de Paulo Pereira” ou da “Brasil Oiticica”, homens de peles
e roupas retintas da fuligem expelida pela chaminé da fábrica de óleo vegetal,
caminhavam em procissão com destino aos seus lares. Eles passavam por mim como se eu fosse
invisível, e seguiam todos num “convecê” sem fim, em direção ao corredor que ia
dar no rio Piancó, para lavar o suor vendido por pouco dinheiro, para, só
depois, serem recebidos por suas esposas e penca de filhos nas suas humildes
moradias.
À noite, como era de
costume, cadeiras se espalhavam pelas calçadas, onde homens mulheres se
juntavam para fazerem os relatos orais das histórias por eles vivenciadas
durante todo aquele difícil dia. Naqueles idos anos os dois assuntos mais
importantes e cativantes do momento eram: a fantástica viagem do homem à lua e
a Copa do Mundo de 1970. As ruas eram escuras e apenas o lume das lamparinas a
querosene, acesas nas salas, davam um pouco de claridade àquele lugar.
Os moradores da localidade ouviam
com atenção a “Voz do Brasil” em pequenos rádios de pilhas, colocados ali na
janela. Fumavam, riam e cuspiam no chão, ao tempo que aproveitavam o fresco
vento Acari, até que, um a um fossem retomando
aos seus lares, levando nas mãos o tamborete que trouxeram, para, por fim, já
tarde da noite, o dono da casa gritar por seus rebentos, anunciando a hora de
dormir.
O “dono da calçada” entrava
em casa, batia o ferrolho da janela, soprava a lamparina e o silêncio se fazia
por todo o bairro, sendo uma ou outra vez cortado pelo apito estridente do
guarda noturno, que passava em sua velha bicicleta, guardando o sono e o
patrimônio dos seus iguais, até que o sol voltasse em sua plenitude, trazendo
de volta a segurança do dia, para que aquele povo reiniciasse a lida e a rotina
diária. Eles eram acordados pelos gritos dos vendedores de água que vinham do
rio com seus lotes de jumentos, cruzando a cidade com suas ancoretas furadas,
deixando escapar a água, como se fosse uma forma de marcar o caminho para não
errar na volta.
Daquele povo, guardo na
memória o nome e a feição marcada pelos seus sofrimentos, contrapondo-se ao
riso forçado a alegria desfaçada de quem já não aguardava para si a chegada de
melhores de dias.
Daquele povo, de cada um
deles, guardo as marcas das suas faces sofridas, muito embora já tenham se
passado cinquenta anos, e muitos deles não mais circulem pelas ruas quentes de
Pombal: a morte buscou nossos heróis sem piedade.
Era essa a rotina da Rua de
Baixo no ano de 1969, quando a humanidade assistia a corrida espacial, na
disputa entre União Soviética e Estados Unidos, para saber quem seriam os primeiros
a deixarem suas pegadas no poeirento e frio solo lunar. Guardo essas marcas e essas
lembranças em mim porque entre eles um era o meu pai.
Na parte de cima da cidade
de Pombal, onde viviam os pombalenses mais afortunados, a situação era um pouco
mais confortável. As pessoas também se sentavam nas calçadas em suas cadeiras
de balançar para contar suas sagas, porém, diferentes das histórias daqueles
moradores humildes da Rua de Baixo.
As ruas já começavam a
receber o calçamento em pedras e nas
salas de jantar aos pouco o rádio estava sendo substituído pela televisão.
Eles discutiam com desenvoltura notícias da revista “Cruzeiro” que noticiava em
suas páginas coloridas os avanços políticos e tecnológicos do novo mundo que se
desenhava, ao tempo que negava as mortes no Araguaia.
Àquelas horas os moradores
da rua de cima já haviam jantado a comida feita pelas mulheres da Rua de Baixo
e tomado seu banho com a agua do Piancó, bastecida em seus potes pelos
“aguadores” moradores da Rua de Baixo.
Porém, assim como na parte
mais humilde da cidade, os assuntos mais comentados nas prosas das duas comunidades
eram os mesmos: a fantástica viagem do homem à lua e a Copa do Mundo de 1970.
Final da noite, o
funcionário da prefeitura começava a desligar a luz dos postes, dando a “deixa”
para os moradores deixarem as suas calçadas. Os proprietários das casas colocavam
para dentro as cadeiras, entravam, fechavam as portas, apagavam as lâmpadas e se
deitavam em suas camas. Eram acordados
no meia da noite, praguejando pelo apito estridente do Guarda Noturno, que
passava em sua velha bicicleta, guardando o sono e o sagrado patrimônio dos
moradores da rua de cima.
Eram essas “as duas Pombal” antagônicas,
rodeadas por muitas “ruas de baixo”, onde agricultores, artífices e operários “viram”
o Apolo XI subir com destino a lua, que até aquele momento pertencia aos poetas
e trovadores e que agora era “invadida” por militares.
Porém, as “duas Pombal”,
tanto a de baixo como a de cima, tiveram seu momento de iguais nas suas
diferenças quando, na noite do dia 20 de julho de 1969, uma noite de pouca luz no
céu, em que a lua, feito moça solteira em baile de debutante se amostrava aos
olhos curiosos do nosso povo, que tentava ver, e uns até juraram terem visto,
um foguete soltando fogo pelo céu com destino à lua!
- Olhe bem ali o fogo saindo
do rabo do foguete. -Disse seu Godô lá, da Rua de Baixo.
- Eu mesmo não acredito
nessa história de homem na lua.- Retrucou seu Antônio do Ó, na rua de cima.
*Pesquisador
e Escritor pombalense
AS DUAS POMBAL QUE “FORAM” À LUA EM 20 DE JULHO DE 1969.
Reviewed by Clemildo Brunet
on
7/19/2019 09:27:00 AM
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Um comentário
Muito nostálgico,bem escrito e acima de tudo verdadeiro...
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