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CASA DE FARINHA: NO TEMPO DAS "DESMANCHAS"

Ignácio Tavares
Ignácio Tavares*

Não tenho como esquecer as boas lembranças da velha Casa de Farinha do Sitio da minha Avó. Era uma construção modesta de apenas dois vãos. Ao lado direito ficava a casa onde minha Avó se hospedava quando havia necessidade de estar no sitio por motivo de força maior. O outro era um espaço amplo que servia para abrigar os aviamentos usados na produção de farinha.

Não cheguei a participar das farinhadas no sitio da minha Avó, posto que, antes do meu nascimento esta atividade já era coisa do passado. Não sei dizer com exatidão o ano que minha Avó deixou de produzir farinha, mas, lembro-me que, quando criança, eu e o primo Benigno costumávamos brincar de fazer farinha, pois os aviamentos ainda estavam em perfeito estado de conservação

A rigor, o que sei sobre essa atividade industrial/artesanal na Outra Banda foi contado por minha Mãe. Costumava dizer-me que quando havia “desmancha”, era uma verdadeira festa. Envolvia toda família e vizinhos próximos, que com certa freqüência estavam presentes a fim de dar um adjutório em troca de beijus e alguns quilos de farinha.

Da Rua do Comércio faziam-se presentes: Cícero Facundo, Cresço, seu Minervino, seu Zuza, Marcionilo, entre outros. Todos trabalhavam juntos às mulheres na raspagem da mandioca, para ser posta no caititu a fim de ser triturada. Em seguida a massa era posta na prensa para curtir e liberar a umidade, durante algumas horas.

Toda água liberada nesse processo, conhecida como manipueira, era e ainda é, altamente tóxica, por isso proibitiva para o consumo animal. Em seguida a massa era exposta ao sol, pra secagem e depois levada ao forno para ser torrada, por conseguinte, transformada em farinha.

O mestre encarregado de mexer a farinha, à uma temperatura média, era quem determinada o ponto ideal para que o produto ficasse pronto para o consumo humano. Ninguém opinava, pois só quem entendia mesmo o ponto ideal para farinha sair do forno, era mesmo o mestre.

Em meio a esse processo outro produto despertava interesse a todos participantes da farinhada. Era o beijou. Trata-se de uma tapioca gigante, feita de farinha, recheada com coco ralada de sabor inigualável. Quem não gostava de saborear um beiju quentinho saído do forno?

O ponto alto era a hora do café, sempre acompanhado de um bom naco de beiju. As pessoas ficavam ao redor da mesa a disputar um naco avantajado, pois a vontade de se fartar de beiju era grande. Fila? Nem pensar, porque o melhor naco de beiju era de quem chegasse primeiro. Neste momento os cotovelos entravam em ação.

Quando terminava a “desmancha” da mandioca da Outra Banda, iniciava-se o processamento das raízes produzidas nos sítios vizinhos. A festa continuava. No final de dezembro encerrava-se o ciclo de produção de farinha e as coisas tomavam o seu devido lugar. As principais peças dos aviamentos eram ensebadas com sebo de carneiro capado, para conservar e evitar desgastes por conta da ação do tempo.

Ao passar dos anos, as Casas de Farinha encerraram suas atividades. A última a fechar as portas foi a de Juquinha, na Cambôa. Em várias ocasiões tive oportunidade de participar de algumas farinhadas em companhia do meu pai. O certo é que, quase todas as casas de farinhas encerraram suas atividades, restando a triste lembrança daquele bom tempo.

A casa de farinha fazia parte da paisagem da maioria das propriedades do sertão paraibano. Segundo o pesquisar Dr. Walter Borges Bezerra, no seu trabalho “Agroindústria na Paraíba”, no município de Pombal, a partir do inicio do século passado até o fim dos anos trinta, havia 270 Casas de Farinha e 300 engenhos de rapadura. Sumiram quase todas.

Por que não se produz mais farinha na terrinha ou mesmo no sertão, tanto o quanto se produzia antigamente? É fácil explicar. A razão maior foi a revolucionária mudança que ocorreu no processo produtivo da economia brasileira a iniciar no final da terceira década do século passado.

O mais importante livro do Professor Celso Furtado, “Formação Econômica do Brasil”, evidencia que é no final dos anos vinte que tem inicio o processo de industrialização da economia brasileira. O sistema produtivo artesanal perdeu espaços para a indústria mecanizada de elevada capacidade para produção em grande escala.

O Brasil não tinha outra saída a não ser produzir as mercadorias que antes importava. A crise internacional reduziu a nossa capacidade de importação a uma expressão mínima, pois as reservas cambiais amealhadas com a exportação do café caíram a níveis insuportáveis. Repito: só houve uma saída, qual seja, concentrar esforços de investimentos para produzir dentro do país os produtos que antes eram importados. Assim foi feito.

Em meio a efervescência industrial, a indústria de fiação e tecelagem foi a que mais prosperou. O resultado foi uma explosão no preço da fibra do algodão, matéria prima básica pra produção de tecidos e fios. Desse modo, houve um aumento substancial na produção de algodão, em razão dos preços elevados, num intervalo de tempo relativamente curto.

Em sendo o nordeste, naquela época, o maior produtor de algodão do país, impulsionados pelos preços que o mercado estava a oferecer, as terras antes usadas para o plantio de culturas de baixa rentabilidade, em particular a mandioca, foram reservadas para expandir o plantio do algodão.

Já nos anos quarenta a mandioca deixou de existir na maioria das pequenas, médias e grandes propriedades, por conta do avanço da cultura do algodão. A partir daí consagrou-se um novo arranjo produtivo fundamentado no consórcio, algodão/milho/feijão.

Definitivamente a mandioca desaparece do cenário agrícola em razão da sua baixa rentabilidade associada às desvantajosas opções de mercado. Estima-se que na época das “desmanchas” no sertão paraibano a produção de mandioca, por hectare, não chegava a três mil quilos. Era uma cultura de ciclo longo de dezoito meses, que alem de ocupar as terras de boa qualidade, não permitia o consorcio com a pecuária bovina, entre outras de pequeno porte.

Eis as razões maiores que levaram a mandioca desaparecer como atividade produtiva nas pequenas e médias propriedades rurais no sertão paraibano. As gerações de produtores rurais que sucederam as gerações passadas desconhecem as técnicas de plantio da mandioca, assim como as formas de processamento a fim de transformá-la em farinha, entre outros derivados. Assim sendo, decretou-se, enfim, a sentença de condenação da cultura da mandioca, ninguém sabe até quando.

Na Outra Banda, da velha casa de farinha só restam os escombros e nada mais. Ressuscitá-la? Com certeza não há nenhuma justificativa econômica para que isso possa acontecer. Alguma vez cheguei a pensar nessa possibilidade, mas, por razões de foro intimo fui obrigado a desistir do projeto.

Só me restam às boas lembranças de quando a velha casa nos servia de abrigo pra mim e o mano Felix, depois de intenso e cansativo dia de trabalho. Essa é outra estória em seqüência deste texto. Até breve

João Pessoa, 02 de Dezembro de 2011

*Economista e escritor pombalense
CASA DE FARINHA: NO TEMPO DAS "DESMANCHAS" CASA DE FARINHA: NO TEMPO DAS "DESMANCHAS" Reviewed by Clemildo Brunet on 12/02/2011 08:04:00 PM Rating: 5

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