Biró de Onofre
Romero Araújo Cardoso |
José
Romero Araújo Cardoso*
Ele nasceu em 15 de novembro de 1926 e faleceu no fatídico dia dois de agosto
de 1976. Veio ao mundo na cidade de Pombal, Estado da Paraíba, e lá também desencarnou.
Visitei seu túmulo em cinco de novembro de 2005, na companhia de alunos da
graduação do curso de Geografia do Campus Central da Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte, quando de viagem de estudo de campo programada para a
disciplina Geografia das Indústrias e dos Serviços.
Não pude lhe fazer visita de túmulo no dia de finados, razão pela qual
solicitei ao corpo discente que coordenei em atividades de campo para acender
velas comigo no jazigo onde ele repousa eternamente.
Nunca havia tocado com ênfase no assunto, é algo que me incomoda, pois se trata
do meu pai, um homem a quem dedico muitas reflexões e orações. Foi ele quem
começou a me ensinar os segredos do sertão, mostrando-me o que representava
cada filete d’água do rio Piancó, os métodos para pescar e caçar e a serventia
de cada espécie de nossa flora tão ameaçada pela ação do homem nos dias de
hoje.
Recordo-me bastante de Biró de Onofre, não obstante ter apenas seis anos, perto
de completar sete, quando ele fez sua última viagem rumo ao além. Ele era
baixinho, moreno de cabelos lisos e fala mansa e pausada. Conversava sempre
fitando as pessoas nos olhos, bem no fundo dos olhos. Creio que foi dele que
herdei isso.
Papai, porém, tinha na imprudência, uma marca registrada. Ele não tinha medo de
absolutamente nada, era corajoso ao extremo. Nada se constituía em mistério
para ele, tudo era natural e passível de ser desvendado. Mas a imprudência de
Biró de Onofre lhe foi fatal, ele desprezava toda e qualquer noção acerca de
cuidados. Pena que ele achasse o contrário.
Chorei no seu túmulo quando da visita efetivada por não ter tido como ir ao dia
de finados de 2005 em Pombal. Chorei muito, me lembrando de muitas coisas que
passamos juntos, lembrei também as inúmeras surras que levei dele. Papai era um
siri na lata quando se zangava, ninguém conseguia controlá-lo.
A tragédia de Biró de Onofre aconteceu numa segunda-feira. Era a primeira
segunda de agosto, quando a tradição judaico-sertaneja prescreve a necessidade
de não haver manuseio de instrumentos de metal.
Tudo começou quando a trifásica que corta o terreno de Chiquinha de Dozinho,
irmã do meu avô, começou a tangenciar as galhas da cajazeira que ali existia.
Descargas impressionantes foram lançadas ao chão, causando espanto e terror às
nossas primas da rua de baixo.
Biró de Onofre |
Biró, intempestivo e sem nada temer, observou o pavor de todos e logo começou a
arquitetar seu último plano. Tinha que cortar àquelas galhas imediatamente,
antes que algo pior pudesse acontecer. Conhecedores do temperamento
espalhafatoso e surrealista de Biró de Onofre, alguns parentes acionaram a
companhia energética paraibana, tentando evitar o iminente, o inevitável. Ele
estava disposto a se arriscar, num gesto de altruísmo, intuindo que vidas não
fossem ceifadas.
Papai, o senhor deveria ter pensado mais, ter raciocinado sobre inúmeras
hipóteses, principalmente no sofrimento do seu filho único que tanto te amou e
ainda te ama. O senhor deveria ter pensado em sua esposa que varava plantões no
Hospital Distrital, mas, para ele, era a aventura de mostrar que não tinha medo
que mais importava.
Ele me deixou de manhã, bem cedinho, na casa da irmã, minha mãe Cora, minha e
também de Natalzinho. Rumou para a rua de baixo irresoluto. Tinha que cumprir
àquela “missão” e se imortalizar no imaginário sertanejo, que tanto louva os
bravos e destemidos. Mas a prudência deveria norteá-lo, não poderia pensar
apenas na “glória”. E que glória é essa? Será “glorioso” deixar um órfão e uma
viúva desamparados? Será “glorioso” morrer como herói?
Na cajazeira, os galhos vibravam ao sabor dos ventos, cada centímetro quadrado
da árvore escondia a asa negra da morte. Era uma aventura inusitada que ele
abraçava.
Dona Porcina de Zé Vicente, com a experiência dos sertanejos, logo percebeu o
objetivo de Biró de Onofre. Avisou-lhe que ali não era lugar para se aventurar,
para mostrar valentia. Tentou de todas as formas demovê-lo daquela empreitada
absurda. Afinal, a companhia energética estava a caminho. Mas, desprezando os
avisos, o que era natural num homem que não tinha medo de nada, ele subiu na
cajazeira e logo começou a podar os galhos traiçoeiros
da frondosa espécie
nativa do semi-árido.
Não demorou muito e Chiquinha de Dozinho também engrossou a corrente a fim de
que ele parasse com àquela sandice. Cortar uma árvore cujos galhos estavam em contato
com uma trifásica era o mesmo que estar buscando a morte.
Mas ele nem ligou, continuou seu trabalho fatal. Era a última etapa de sua
vida, não mais teria as chances que Deus havia lhe concedido. Antes disso, ele
foi vítima com o primo Zé Cardoso de uma descarga elétrica estupenda, quando
trabalhavam estendendo a fiação telefônica pela zona rural de Pombal. Os fios
haviam se conectado com a mesma trifásica que o levou à eternidade.
Às 10 e 30 da manhã do dia dois de agosto de 1976, Biró de Onofre se despedia
da vida, vítima daquilo que tanto lhe aconselharam a não fazer. A última galha
era a mais perigosa, mas ele nem queria saber disso. Tentou cortá-la, e
conseguiu o intento, mas como era bastante pesada, logo ela envergou em direção
à alta-tensão, fulminando-o instantaneamente.
Biró, Severino Cruz Cardoso, este era seu nome completo, o senhor devia ter
tido um pouco de paciência, pois depois de sua desencarnação os funcionários da
companhia energética, comandados por um primo legítimo de sua esposa, chegavam
ao local para fazer o trabalho que não era de sua competência.
Rogo a Deus Todo Poderoso, o D’Us de nosso povo, o Grande Arquiteto do
Universo, simbolizado na estrela disfarçada em Rosa no frontispício da casa dos seus tios Aarão Ignácio Cardoso D’Arão e Facunda Alencar, que lhe conduza
ao reino dos justos e dos honrados, pois és a essência das reminiscências e das
saudades de alguém que ficou neste plano terreno a chorar sua perda, a remoer a
saudade de sua presença. Que Deus te
proteja e te dê os Céus como recompensa pelo gesto de extremo altruísmo que
protagonizastes.
*Geógrafo.
Professor-adjunto da UERN.
Biró de Onofre
Reviewed by Clemildo Brunet
on
11/26/2012 07:00:00 AM
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