A última viagem de um maquinista do transporte férreo de passageiros
J.Romero Araújo Cardoso |
José
Romero Araújo Cardoso*
Parecia estar vivendo um pesadelo quando
acionou o mecanismo que impulsionou velocidade à velha locomotiva, pois aquela
seria sua última viagem conduzindo a composição férrea transportando
passageiros, a qual, em verdade, passou a ser nos últimos vinte e três anos
como um membro da família.
Não era a aposentadoria que estava chegando e sim a desativação do ramal
ferroviário que estava acontecendo, algo que considerava inamissível em um país
dito civilizado, cuja economia dependia diretamente da viabilidade dos meios de
transportes a fim de escoar a produção e
Entre tantos problemas enfrentados, agora aparecia mais um, pois a
incorporação em outro setor era uma incógnita que o acompanharia na última
viagem como maquinista da velha estrada de ferro. Falavam em contenção de
despesas, em dispensa de pessoal, etc.
O trem começou a ganhar velocidade, fazendo tremer trilhos e dormentes
envelhecidos pelo tempo. O descaso com o meio de transporte estava tão visível
que a manutenção não vinha sendo feita há muito tempo.
Reflexões começaram a ser feitas pelo velho maquinista, sobre as razões
de tamanha irresponsabilidade para com a coletividade. Inteligente, leitor
ávido quando tinha tempo, lembrou-se que o modelo de substituição de
importações adotado pelo governo federal a partir de 1956 priorizou a indústria
automobilística em detrimento de transportes de massas.
Seria impossível conceber que no ensejo da concretização de uma nova
ordem econômica pautada na individualidade houvesse espaço livre para o
transporte férreo. As ferrovias, mais dia menos dia, seriam desativadas para
viabilizar a acumulação extraordinária das grandes empresas que se instalaram
no país devido tantas vantagens oferecidas.
Quantas famílias são alimentadas como o trabalho na estrada de ferro?
Inúmeras. Incontáveis. Se contarmos empregos diretos e indiretos os números
subirão ás alturas. É uma verdadeira falta de humanismo cometer tamanha
atrocidade com tanta gente. Será que esse povo que tem o poder nas mãos não
possui coração? Refletia o velho maquinista com suspiros no peito.
Cada estação na qual o trem parava era milimetricamente observada pelo
maquinista. Colegas de trabalho com olhares tristes, realizando dentro e fora
da estação os últimos trabalhos. Pobres viúvas vendendo pastéis, cocadas,
tapiocas e outras iguarias da culinária local, cujos semblantes refletiam as incertezas
sobre o que fariam depois que a linha férrea fosse desativada. Como apurariam
um dinheirinho para os medicamentos dos filhos e netos, já que o sistema de
saúde no pais é tão precário? Vendedores de fitas cassetes com os sistemas de
sons a toda altura, visando atrair fregueses para comprar seus produtos, foram
notados pelo velho maquinista. A tristeza também estava presente naqueles
beneficiados pela estrada de ferro.
Esses trilhos por onde o trem passa vai ter qual destino? Será que vão
vender como ferro pesado em algum lugar distante? Lógico que vão aproveitar de
alguma forma isso tudo, fruto de um luta imensa que começou no século XIX. Para
esses trilhos chegarem no Estado vizinho foi uma luta imensa. Somente na
segunda metade da década de 1950 foi que alcançou o ramal que pode
interligar-nos com o resto do país. Tudo vai ser destruído, acho que quase nada
vai ficar de lembrança. O povo tem memória curta. Logo, logo nem vai se lembrar
que essa estrada de ferro existiu, bem como quantas pessoas beneficiou, quanta
gente transportou.
E o transporte de carga? Será que vão ter a coragem de desativar também?
Se tiverem, como vai ser para fazer o escoamento da nossa produção? Claro,
caminhões. Muitos veículos de grande porte começarão a chegar em nossa região
para fazer o transporte das cargas que o trem fazia. Com as estradas
esburacadas e mal conservadas, penso no que passará a acontecer. Acidentes,
óbitos, dor das famílias desses profissionais e das pessoas que eles
acidentarão.
Penso que se desativarem
também o transporte férreo de cargas e os caminhões começarem a se
responsabilizar pelo transporte da produção, haverá aumento no índice de
prostituição, entre outros inúmeros problemas que surgirão.
No ponto terminal da viagem, os lamentos não estavam sendo os mesmos por
que a linha férrea não estava ameaçada em sua interligação para o resto do
país, mas devido ao vínculo cultural formado ao longo dos anos, era notado o
sentimento que todos demonstravam em razão da desativação do transporte de
passageiros que unia os dois estados.
Crônica laureada com
Menção Honrosa no Resultado final do Terceiro Concurso de Crônicas, Contos e
Poesias "João Batista Cascudo Rodrigues" - Versão 2016 - Promoção:
Academia Mossoroense de Letras – AMOL
José Romero Araújo Cardoso (Mini Currículo):
*Geógrafo
(UFPB). Especialista em Geografia e Gestão Territorial (UFPB-1996) e em
Organização de Arquivos (UFPB - 1997). Mestre em Desenvolvimento e Meio
Ambiente pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2002). Atualmente
é professor adjunto IV do Departamento de Geografia/DGE da Faculdade de
Filosofia e Ciências Sociais/FAFIC da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte/UERN. Tem experiência na área de Geografia Humana, com ênfase à Geografia
Agrária, atuando principalmente nos seguintes temas: ambientalismo, nordeste,
temas regionais. Espeleologia é tema presente em pesquisas. Escritor e
articulista cultural. Escreve para diversos jornais, sites e blogs. Sócio da
Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC) e do Instituto Cultural do
Oeste Potiguar (ICOP). Membro da Associação Mossoroense de Escritores (ASCRIM).
Endereço
residencial: Rua Raimundo Guilherme, 117 – Quadra 34 – Lote 32 – Conjunto Vingt
Rosado – Mossoró – RN – CEP: 59.626-630 – Fones: (84) 9-8738-0646 – (84)
9-9702-3596 – E-mail:romero.cardoso@gmail.com
A última viagem de um maquinista do transporte férreo de passageiros
Reviewed by Clemildo Brunet
on
11/19/2016 08:33:00 AM
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