ASSOMBRAÇÃO
Severino Coelho Viana |
Por
Severino Coelho Viana*
Recordamos-nos de um tempo que na zona
rural e na cidade, também, principalmente nas residências de família grande,
após o jantar, logo cedo da noite, todos se sentavam na calçada alta, em forma
de meia lua, para ouvir estórias de assombração, anedotas e leitura de verso de
cordel que contavam as histórias e estórias de cangaceiros no sertão
nordestino.
No Brasil, país que o catolicismo
predomina, mas tem o maior contingente do mundo de adeptos declarados da
ciência Espírita, os fantasmas da tradição popular são caracterizados pelas
cores da História que permeiam a formação da cultura nacional. As assombrações
são personagens que viveram episódios dramáticos e/ou traumáticos da
colonização, dos tempos do Império e da República Velha, misturando elementos indígenas,
lusos, africanos e do cangaço. Assim, há muitos fantasmas de escravos e sua
contrapartida, de senhores [as] de engenho ou de cafezais que foram
extremamente cruéis. São todos atormentados e tormentosos. Na história mais
recente, fantasmas do século XX já assombram grandes metrópoles, como São Paulo
que, assim como Londres e outras localidades do Reino Unido, tem até
roteiro turístico de lugares assombrados bem como Recife, esta, uma cidade que
conta com tradições fantasmagóricas mais antigas e bem documentadas.
A Procissão dos Mortos
Essa procissão assombrada é o tema de
uma lenda contada em vários estados, especialmente no Nordeste e Centro-Oeste.
O caso se passa nas cidades pequenas e vilas do interior onde é costume ir
dormir cedo. Existem, porém, os insones, que altas horas da noite, se põem à
janela observando o "nada acontecer" da rua. Nestas ocasiões sucede o
episódio macabro: eis que lá vem uma procissão com toda a aparência de uma
caminhada de penitentes usando túnicas escuras com capuz, segurando velas
acesas, entoando ladainhas tristes. Em dado momento, um ou uma destas
aparentemente piedosas criaturas, aproxima-se do [a] curioso [a] que está na
janela e lhe oferece uma vela. O incauto aceita a oferta e lá fica vendo passar
o estranho cortejo. O sono chega, apaga a vela e vai dormir sem suspeitar de
qualquer estranheza. No dia seguinte, ao despertar, vai constatar, com grande
pavor, que a vela se transmutou em osso de gente e a procissão era um cortejo
de mortos vagando no vilarejo, cumprindo a sina das almas penadas que, sem
descanso, nada mais têm a fazer senão assombrar os viventes.
A Missa dos Mortos de Ouro Preto - MG
O caso aconteceu entre o fim do século
XVIII e começo do século XIX, na igreja de Nossa Senhora das Mercês que fica ao
lado de um cemitério. Quem viu foi João Leite, zelador e sacristão que se
preparava para dormir em sua casa, próxima ao templo, quando percebeu luzes na
igreja e foi verificar o que acontecia. Deu com uma missa em andamento, repleta
de fiéis vestidos em longas túnicas escuras e um estranho padre cuja nuca era
pelada e branca. Eis que o padre voltou-se para a assembleia e pronunciou
"Dominus Vobiscum". Foi aí que o sacristão viu-lhe a face cadavérica
e bem reparando constatou que todos os presentes eram igualmente esqueletos.
Tratou de escafeder-se sem chamar a atenção, mas ainda a tempo de observar que
a porta de acesso ao cemitério estava aberta. O episódio entrou para os anais
das histórias de assombração da cidade de Ouro Preto.
O Fantasma de Teresa Bicuda & Outros
Filhos que Maltratam os Pais [Jaraguá ─ Goiás]
Teresa Bicuda era uma moça de lábios
grossos que lhe valeram o apelido. Morava em Jaraguá, no Larguinho de Santana.
Pessoa de maus bofes tratava a mãe de forma absolutamente cruel: botava a velha
para mendigar nas ruas, batia nela, humilhava. Um dia, chegou ao extremo da
maldade e, diz o povo, colocou um freio de cavalo na boca da genitora, montou,
e nela andou montada à frente de todo o povo. Aquilo foi demais: a pobre mulher
morreu, porém, antes de morrer, excomungou a filha desnaturada. Teresa Bicuda,
que já era psicopata, finalmente, ficou maluca de vez, viciou-se na bebida e
vagava pelas ruas gritando todo tipo de sandices até que morreu e foi enterrada
no cemitério. Perturbada em vida, virou fantasma atormentado e tormentoso na
morte. Alma penada, seu espírito vagava pelas ruas, gritando do mesmo jeito,
como no dia em que cavalgara a própria mãe; os lamentos da vítima também eram
ouvidos. Desenterraram seu corpo e sepultaram atrás da Igreja do Rosário. De
nada adiantou a providência: o fantasma continuava com seus escândalos. Mais
uma vez, trocaram-na de cova, desta vez, foi para a cabeceira de um córrego
onde puseram uma cruz e desde então o lugar ficou mal assombrado, o córrego da
Teresa Bicuda.
Almas Sedutoras
Este tipo de assombração já virou lenda
urbana e faz suas aparições em muitas metrópoles brasileiras: são damas de
branco e as louras do táxi que têm rendido histórias desde o começo do século
XX e se renovam, em versões contemporâneas que já viraram tema de reportagem em
programa de televisão, como um bem recente que apareceu no SBT e assombra
taxistas em São Paulo. Neste caso, era uma jovem que tinha morrido no dia do
seu aniversário e todos os anos, neste mesmo dia, acena para um táxi, pede para
dar voltas na cidade e, ao cair da noite, parando em frente a uma casa, alega
não ter dinheiro para pagar a corrida e combina com o taxista saldar a dívida
no dia seguinte. O motorista volta ao endereço e lá descobre que a bela
passageira morreu há algum tempo. Minas Gerais também tem sua alma penada
sedutora: é a Loira do Bonfim de Belo Horizonte, datada entre 1940 e 1950:
"...uma mulher que aparecia por
volta das duas horas da madrugada, sempre vestindo roupas brancas,
insinuando-se junto aos boêmios que aguardavam condução no ponto de bonde
existente diante de uma drogaria, no centro da cidade. Dizia que morava no
Bonfim, que estava a fim de um programa, e quando alguém se interessava, ela o
levava para o cemitério do bairro, desaparecendo assim que chegavam àquele
local. Como às vezes a criatura preferia chamar um táxi, os motoristas desses
veículos de aluguel, além dos motorneiros e condutores dos bondes, passaram a
não aceitar a escala de trabalho no horário noturno. Não era por medo, diziam eles,
mas sim por precaução”.
O Fantasma de Ana Jansen [Maranhão]
Ana Joaquina Jansen Pereira [1787-1889],
Donana Jansen, nasceu e morreu em São Luis do Maranhão. Duas vezes casada, duas
vezes viúva, teve 12 filhos, nem todos foram fruto dos casamentos, mas das
relações com amantes que escandalizavam a sociedade da época. Comerciante
poderosa foi uma pessoa influente, posição rara para as mulheres daquele tempo.
Senhora de muitos escravos, tornou-se conhecida pela crueldade com que tratava
os negros, submetendo-os às mais bárbaras torturas que, não raro, provocavam a
morte de suas vítimas. Muitas das ossadas destes infelizes foram encontradas em
um poço localizado nas terras da tirana. Quando morreu, aos 82 anos, em seu
casarão da Praia Grande, sua alma não encontrou descanso. Nas noites de
sexta-feira, ela assombra as ruas da capital maranhense, a bordo de uma
carruagem que passava em desabalada carreira puxada por uma parelha de cavalos
brancos sem cabeça [algumas versões dizem: "com chamas no lugar das cabeças"],
guiada pelo esqueleto espectral de um escravo também decapitado. É o coche
"maldito", que sai do cemitério do Gavião em seu passeio macabro
seguido pelo som dos lamentos dos escravos supliciados. O fantasma quer orações
pela sua salvação e quem se recusa a atender ao pedido, é visitado pelo
espectro de Donana: aparece ao leito do devedor antes que caia no sono e
entrega-lhe uma vela que, no dia seguinte, terá se transformado em osso humano
[olha a vela - osso de novo!].
Depois da noitada de anedotas tinham
pessoas que ficavam de clarão com medo de fechar os olhos.
No próximo artigo tentaremos expor novas
estórias de assombração, mas, se você é um apaixonado por este tipo de leitura,
leia o livro “Assombrações do Recife Velho”, do sociólogo Gilberto Freire, O
livro conta com 14 histórias inéditas que recriam personagens de lendas
fantasmagóricas coletados em livros, jornais antigos e, sobretudo, junto ao
povo. Narra estória do lobisomem, o papa-figo, a Emparedada da Rua Nova, a
Perna Cabeluda e a Comadre Fulozinha.
João
Pessoa, 30 de janeiro de 2017.
*Escritor
pombalense e Promotor de Justiça em João Pessoa – PB
scoelho@globo.com
ASSOMBRAÇÃO
Reviewed by Clemildo Brunet
on
1/30/2017 12:18:00 PM
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