COMO ESCREVI MEU PRIMEIRO ROMANCE
W. J. Solha |
Por
Waldemar José Solha*
Em Pombal, onde vivi de 63 a 70,
trabalhando no BB, escrevi alguns contos e peças. Aí veio a produção do longa O
SALÁRIO DA MORTE, dirigido pelo Linduarte Noronha, em que atuei como ator e
como diretor de produção, depois do que fui transferido pra João Pessoa. Mais
dois ou três anos dedicados à Cactus Produções Cinematográficas Ltda – sem
carro nem tv, morando em casa alugada, devendo muito - pensei no que poderia
criar sem custo, donde passei a escrever versos no verso de papeis usados no
banco.
Sempre usei um macete extremamente
trabalhoso, na minha escrita. A maioria dos escritores andam de caderno de
notas no bolso, colhendo elementos que o acaso lhes oferece. Como eu não tinha
tempo pra isso, criei um sistemático “arrancar” frases a partir do trabalho de
grandes fotógrafos - como Robert Capa ou Cartier Bresson - além de grandes
pintores e escultores de todos os estilos e épocas, através das várias Histórias
da Arte, coisas que sempre tive comigo, inclusive a coleção Gênios da Pintura,
que fizera no sertão. Assim, fui produzindo versos sem quaisquer poemas em
mente, e -
depois - alinhavava as frases de mais
alta resolução que conseguia. Veja como o começo do pequeno poema que abre meu
primeiro romance, ISRAEL REMORA, revela a procedência dos versos:
“Oca estátua de bronze
- os olhos... dois buracos escuros -
é como me sinto.”
Com um lote de versos produzidos assim -
como num quebra-cabeça - montei um livro, de que não gostei, pelo que botei a
viola no saco.
Nesse meio tempo, sempre encontrei
público, nas horas de folga, no banco, para meus “causos” cheios de filmagens;
teatro proibido pela Censura; confusão com o exército, no asfaltamento da BR,
em que acabei cabra marcado pra morrer; etc, etc. Um belo dia, um de meus
chefes - Marcos Aguiar - me disse uma frase que me marcou:
- Se você contasse essas suas coisas num
livro, eu o compraria.
Ora, eu acabara de ler “As Aventuras de
Nick Adams” e estava fascinado com os contos em que Hemingway pusera as
passagens mais anódinas de sua juventude, muitas vezes acompanhando as andanças
do pai - médico de índios - sendo sua melhor história a de uma pescaria num
rio, sem qualquer incidente - sem qualquer... história - e aquilo me fez
perguntar-me: “Como é que se consegue escrever tão bem sobre... nada?”
Comecei a passar para o papel, na velha
Remington, meus “causos” vistos ou vividos em Pombal, principalmente dentro do
meio bancário. Distanciando-me do mestre ianque, no entanto, acabei
selecionando as passagens mais tensas - pois, como dizia Schopenhauer, só a dor
é positiva. Aí fui trocando os nomes verdadeiros que utilizara, por outros,
falsos - inclusive o da cidade - fundindo cenas e personagens, ficcionando a coisa.
Um belo dia, ao me lembrar de meu abandonado livro de poemas, vi que falava das
mesmas angústias do embrionário romance, embora em níveis diferentes.
Experimentei com eles, então, o cinematográfico recurso da montagem, como Dziga
Vertov fez , ao juntar uma cena em que esquifes eram baixados às covas em
Cronstad, 1912, com a seguinte, em que canhões davam salvas em Petrogrado,
1920, a que se seguia a imagem de moscovitas, em 22, tirando os chapéus. A cada
episódio narrado em prosa, colei - literalmente, com fita adesiva - um texto
poético... e aconteceu o passe mágico que eu imaginava: os versos tornaram-se
monólogos de meu alter ego, Israel.
Com o calhamaço datilografado e já com
título - ISRAEL RÊMORA - senti-me inseguro do gênero de trabalho que tinha nas
mãos, pois ali não havia... enredo, pelo menos o que se convencionara chamar
assim. Nesse impasse, li “O Jogo da Amarelinha” do Cortázar, e senti - por
invisível analogia - que em “Israel Rêmora” eu fora, também, romancista. Por
gratidão, fiz com que meu protagonista encontrasse, no “cabaré” de Cajazeiras,
a bela Maga que desaparecera de Paris e da vida de Horácio de Oliveira - na
trama do argentino - tendo com ela um filho a que ela dará o nome de Rocamadur
- o mesmo do menino que perdera na França..
Quando dei meu trabalho por terminado,
julguei ter uma obra-prima nas mãos. Ansioso por uma confirmação, fui até o
hospital em que o Jurandy Moura ( que fora o assistente de direção de “O
Salário da Morte” ) estava internado ( com hepatite, se não me engano ) e ele
me pediu uma semana para examinar o livro. Jurandy - contista, poeta, foi - não
me lembro se nessa época - diretor do Correio das Artes, suplemento literário
do jornal A União. Quando voltei para ouvir seu comentário, recebi o impacto:
- Muito ruim...
Quando fui abrir a boca pra dizer que
ele estava redondamente enganado, disse-me com enorme calma:
- Olha: quando a gente acaba de escrever
alguma coisa, ainda está tão envolvido com o texto que , frequentemente,
imagina ter dito o que não disse ou não percebe ter dito muito mais do que
deveria. Faça o seguinte: ponha a data de hoje na capa do romance, guarde-o, vá
fazer outra coisa e, daqui a exatos seis meses, releia-o. Garanto que terá
outra visão do que produziu.
Saí do hospital revoltado,...mas ouvi
comentários semelhantes do Marcos Luís e do Edgar - este, um aficionado em
literatura, do Banespa - pelo que tive de me render. Comecei a escrever “A
Canga”, que terminei em exatos seis meses, reabri o “Israel”... e morri de
vergonha: tudo que Jurandy e os outros tinham dito estava certo. Só aí descobri
um dos maiores prazeres que se pode ter quando se faz qualquer tipo de arte:
cortar, cortar, cortar, cortar! Lembrei-me de Miguelângelo e de sua frase,
típica de escultor: “Criar consiste mais em tirar do que pôr”.
Adquiri um costume, a partir de então,
de ir até onde me é possível, em cima de um trabalho, ... ouvir – de espírito
desarmado - a opinião de pessoas confiáveis... e recomeçar , depois - sempre
cortando, cortando, cortando.
Certo dia entreguei meus originais -
totalmente retrabalhados - a outro leitor de prestígio no estado: Antonio
Barreto Neto. Dias depois voltei à casa dele... e ouvi o seguinte:
- Há um concurso com as inscrições
abertas, no Rio - o “Fernando Chinaglia” – em que, pela primeira vez, no
Brasil, se dará - além do dinheiro - a edição do romance vencedor por uma
grande editora. Mande o “Israel Rêmora”. Se ele não vencer, não acredito mais
em concurso neste país.
Ele venceu.
*Escritor,
cordelista, ator e artista plástico
COMO ESCREVI MEU PRIMEIRO ROMANCE
Reviewed by Clemildo Brunet
on
3/14/2018 09:41:00 AM
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