HORÁCIO OTÁVIO DE FREITAS (GENTE QUE ME MARCOU – Nº 4)
Cheguei a Pombal com um pouco menos de
22 anos, no dia da inauguração da agência do Banco do Brasil em que iria
trabalhar durante 7 - 16 de março de 63. Vi que todo mundo – incluindo
autoridades - estava lá dentro, fazendo e ouvindo discursos, coisa de que nunca
gostei, fiquei na calçada, fumando. E, fumando, lá vem aquele senhor alvo e de
bom porte – fora dos padrões sertanejos, mas trajando a mesma roupa simples,
camisa desensacada, calçando sandálias – me dizer, de cara, que via meu rosto
irradiando luz, como o de Moisés ao descer do Sinai. “Horácio de Freitas –
apresentou-se. - Fui contratado como avaliador da Carteira de Crédito Agrícola
e Industrial, aí da agência”. “Ah, – eu disse - é o setor de que vou ser
encarregado” Na verdade, sem contar o gerente, o subgerente e os contínuos,
começávamos aquele trabalho pioneiro na cidade – que não tinha nenhuma
livraria, nenhuma banca de jornais, nenhum outro banco - somente com três
funcionários: o Josmar, cearense, que se ocuparia do cadastro; o Lessa,
alagoano, que ficaria com os depósitos e cobrança; e eu, paulista, que ficaria
com a CREAI. Muito bem.
Na primeira vez em que estive no
minifúndio MUNDO NOVO – do Horácio - , fora da cidade, surpreenderam-me, na
prateleira que ele tinha como estante, na sala, alguns livros interessantes,
inclusive de Bertrand Russell, e muitos de ioga. Quando nos aproximamos do
açude, um toque igual ao da apresentação: disse-me que andava sobre as águas.
Pensei em lhe pedir uma demonstração, mas me pareceu que me responderia como no
Evangelho, “Não tentarás ao Senhor teu Deus”. Era, de qualquer modo, um homem
extraordinário: seus laudos de avaliação para financiamentos rurais eram muito
bons. E sua fala mansa e densa, a calma permanente, levaram-me a um respeito
imenso por ele, nos anos que se passaram, quase todos com muito trabalho, nossa
agência crescendo, recebendo mais e mais funcionários, pelo que passei a fazer
literatura e teatro com dois deles. Um belo dia, o Zé Bezerra ganhou um prêmio
no então estado da Guanabara com seu primeiro romance, “Fogo”, e um outro
novato – Ariosvaldo Coqueijo – me levou a escrever pra teatro e a representar.
Aí – uma coisa levando a outra – o Bezerra decide fundar uma produtora de
cinema, a Cactus Produções Cinematográficas Ltda,, pra filmar seu livro, e me
deixei levar por seu entusiasmo, vendendo casa, carro, tudo, tornando-me o
maior acionista da empresa, o que ajudou a convencer muito empresário da cidade
e do campo a entrar na sociedade. Quando se foi montar o elenco, Linduarte
Noronha – o diretor – perguntou “Quem poderia fazer o papel do Gedeão?” Bezerra
disse à queima-roupa: “O Solha – de cujo tipo me servi quando fui descrever o
personagem”. De fato, fomos parceiros de república e, depois, vizinhos na "rua
dos bancários", construída exclusivamente pra explorar o novo filão. “E o
pai dele, quem seria?” Não me lembro se fui eu ou o Bezerra a dizer: “Horácio
de Freitas!” Horácio jamais fora ator, mas éramos loucos. E havia precedentes
notáveis, tipo “Umberto D”, do De Sicca, em que o velho protagonista jamais
vira uma câmera antes. “Não importa – disse o diretor – Todo mundo terá de
fazer teste!”
Foi assim que, em certa manhã de
domingo, reunimo-nos para isso, no Mundo Novo. Horácio botou uma mesa com
cadeiras no terraço acimentado, e – tendo na direção de fotografia ( em 16 mm )
o famoso Rucker Vieira, do “Aruanda” ( no filme substituído por Manuel Clemente
) - preparam-nos para viver ali uma das cenas do filme. Eu no papel de Gedeão,
Horácio como meu pai, Bezerra – apenas pra colaborar com nosso teste - como...
a minha irmã Joaninha.
Linduarte explicou:
- Quando se tem refletores, tudo começa
quando eu digo “Luz!” – e as luzes são acesas. “Câmera!” – e o Rucker botará a
geringonça pra funcionar. “Ação!” – e vocês se põem a interpretar. OK?”
- OK.
- “Luz!” – ele disse. “Câmera!” – e
Rucker disparou a sua. “Ação!”: e Bezerra, em falsete de que ninguém riu, disse
a sua fala. Horácio – espantosamente, pois eu jamais o vira no Cine Lux ( o
único da cidade ) - disse a sua réplica com absoluta perfeição – até que o
interrompi dizendo “Pai!” – e vi o desastre da mão engarrada, tão teatral
quanto a voz.
- Não – eu disse – Estou fora.
- Solha – Bezerra tentou, querendo
salvar a situação – Se você tem consciência da canastrice, isso já é meio
caminho andado!
O assistente de direção, Jurandy Moura,
me emprestou “O Ator de Cinema”, de Pudovkin, e foi assim que o que o amigo
Horácio fez com enorme facilidade, saiu-me com esforço e angústia. Não foi
surpresa quando recebi a notícia de que passaria a fazer o pistoleiro de
aluguel, evidentemente porque teria pouquíssimas falas: duas: “Quem é Chico
Gregório?” – quando vou matá-lo na abertura do filme - e “Cadê o meu dinheiro?”
– perto do final. Foi curioso ver o Horácio de Freitas como o pai – porque
poderia passar como sendo o meu; a Eliane Giardini – minha sobrinha, que eu
trouxera para tentar o papel da que seria minha irmã, por termos o mesmo tipo
físico; e o Valderedo Paiva – escolhido porque parecia uma versão minha
bastante melhorada – louro de olhos azuis e o físico de halterofilista – sem
que eu mesmo não fosse, mais, da família: o Edson Borges foi chamado para o meu
lugar, eu relegado a um sótão de onde observava o entra-e-sai desse grupo. Mas
ficou o prazer sem tamanho de ver o Horácio brilhar na figura do fazendeiro que
é constrangido a me acoitar.
Certo dia terminamos uma cena às 13:30:
eu, da janela, lá em cima, vendo Édson e Eliane chegarem da feira com os sacos
no lombo de um jumento, a mãe ( Margarida Cardoso ) dando com o filho ferido no
rosto, numa briga por causa da irmã.
- Corta! – gritou o diretor e, em
seguida – O resto fica pra amanhã.
- Oxente, Linduarte – me espantei - não
vai filmar agora a sequência da cena lá embaixo?
- Não, porque tem que ser trocada a lata
de filme, que é para interior por outra, para exterior.
- E qual o problema? Será muito melhor
do que eu ter de pegar o jumento de novo, amanhã cedo, e fazer toda a produção
da chegada outra vez!
Horácio, que assistia ao diálogo;
- Amanhã começa o inverno, e vocês não
vão poder filmar mais nada do lado de fora.
Linduarte disse que a gente não entendia
nada de cinema e todo o circo foi desarmado. No dia seguinte, chuva. No outro,
idem. E, com essas e outras, a produção, que deveria ser rodada em 30 dias,
demorou o dobro, o que nos fez ter um prejuízo tremendo. Cabeça baixa, ouvi o
Horácio me dizer: “O que vocês fizeram pra juntar tanta gente ruim?”
Eliane Giardini teve sorte: voltou pra
São Paulo e, lá, fez a brilhante carreira que começara ali. Já a do excelente
ator que Horácio se revelava, morreu ali, com a nossa, de produtores.
Um belo dia, vinte e tantos anos mais
tarde, – 1994 - toca o telefone e é o Paulo Betti – então marido de minha
sobrinha - me dizendo que iria fazer o “Capitão Lamarca”, com o Sérgio Rezende,
e queria o Horácio no elenco, pelo que me pedia que intermediasse a
contratação. “Caramba, com todo o prazer, Paulo!” – e, por telefone, localizei
o amigo em Pombal:
- Horácio?
Passei-lhe a boa nova. E ele, na mesma
fala mansa – de eterna tristeza, notava agora – me respondeu:
- É pena, mas não vou poder participar.
Peça ao Paulo Betti e ao Sérgio Rezende que me perdoem: estou com uma hérnia
terrível e não posso fazer qualquer esforço.
Morreu, não muito tempo depois.
*W. J. Solha -
Escritor, Dramaturgo e Ator
HORÁCIO OTÁVIO DE FREITAS (GENTE QUE ME MARCOU – Nº 4)
Reviewed by Clemildo Brunet
on
6/28/2017 08:20:00 AM
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