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O QUE FOI O MEU 68

Waldemar José Solha

Por Waldemar José Solha*

Os grandes artistas e suas mais geniais criações tendem a ocorrer em pontos de convergência dos acontecimentos, como se deu – conforme aponta Otto Maria Carpeaux - com Virgílio e sua obra-prima, A Eneida, escrita na cúpula do mundo de então, por encomenda de ninguém menos do que César Augusto, que queria algo que rivalizasse com A Ilíada e a Odisseia de Homero, ou as superasse, pra contar a origem divina da família do imperador e da própria Roma, a partir do seu grande antepassado Eneias.
Isso faz pensar em Shakespeare saindo em 1585 da pequena Stratford-upon-Avon, a 160 km de Londres, pra viver, escrever e atuar no coração da Inglaterra, no auge do período elisabetano. Faz pensar em tantos seres especiais saindo de seus países pra viver na Cidade-Luz – quando ela era a capital intelectual do mundo, como exaltada por Woody Allen no Meia-Noite em Paris – gente do porte dos espanhóis Picasso, Buñuel e Dali, dos russos Chagall, Stravinsky e Kandinsky, dos holandeses Van Gogh e Mondrian, dos americanos Hemingway, Henry Miller e Gertrud Stein e muitos brasileiros, como Cícero Dias, Di Cavalcanti, e Tarsila do Amaral.
Mas daqui mesmo, e em seu devido tempo, também emigraram da Paraíba pro Sudeste, figuras como Bráulio Tavares, Chatô e Zé Lins, Pedro Américo, Zé Dumont e Walter Carvalho, mais o Luís Carlos Vasconcelos, Santa Roza e o maestro José Siqueira, etc, etc, etc.
Bem,
ao contrário de toda essa gente brilhante, eu, do Sudeste, mas um filho de carpinteiro e costureira que concluiu ser um artista medíocre, abandonei o curso de pintura que fazia em Sorocaba e – como já trabalhava de dia no escritório de uma loja de eletrodomésticos desde os 15 – passei a fazer um curso de contabilidade. Trabalhei durante um ano no Banco do Commercio e Industria de São Paulo, aos 21 passei no concurso do Banco do Brasil e, como somente havia vagas no sertão nordestino, vim parar em Pombal, na Paraíba... e me senti realizado!
No dia 15 de março de 63, cheguei pra inauguração da agência do Banco do Brasil, na terra de Celso Furtado e Leandro Gomes de Barros, depois de um estágio de nove meses na vizinha Patos. Eu - paulista como Mário Andrade, fui designado pra carteira agrícola, com Lessa – alagoano como Graciliano Ramos, pra carteira de depósitos e cobrança, o Josmar – cearense como Raquel de Queiroz, para o cadastro, mais o gerente – Zé de Nazareth Rodrigues, filho do cineasta Walfredo Rodrigues, que fundara o cinema paraibano com o documentário Sob o Céu Nordestino, onde se filmou, pela primeira vez, a caça às baleias, aqui em Costinha..
Apesar de me surpreender – e de me fascinar - com tanta gente culta no lugar em que menos esperava ( as rodas de calçadas eram como ... academias! ), não tinha a menor intenção de mudar minha rotina... essencial, ante a perspectiva concreta de fazer carreira no banco, pois logo passei a chefe da carteira em que assumira, orgulhando-me de cada novo financiamento a 7% ao ano, que facilitava a produção dos grandes, médios, minis e – principalmente - micros produtores da nossa zona rural.
Mas...
aí se deu que comecei a ter uma série de sonhos de impressionante beleza. Pelo que, em certa noite, deixei lápis e papel ao meu lado, quando fui dormir e, assim que acordei, escrevi o que – extasiado - acabara de viver. Exemplo: eu caminho na calçada de uma rua sem cidade, cheia de mulheres jovens. Entendo que estou sonhando e me impressiona que a imaginação possa ser tão... realista. Marco uma moça que vem na minha direção e, quando ela passa por mim, vejo-lhe – sem que ela, ensimesmada, dê por mim – suas íris, cílios, pelos, poros. Despertei dizendo “Somos, todos, geniais!”
Chegando mais cedo ao banco, datilografei o texto e o repassei ao colega José Bezerra Filho ( um dos que foram chegando com o tempo ), que o remeteu pra um amigo seu, professor do Liceu paraibano e este, que estava montando uma antologia à base do mimeógrafo, me incluiu ao lado de gente como Drummond e Bandeira. “Será possível?” – me perguntei, vendo aquilo.
E nunca mais tive paz.
Começava, ali, uma intensa vida de leitura;A Eneida me pareceu superior à Ilíada e à Odisseia; E ali devorei o teatro e a filosofia gregos. Como Platão me levou à raiz do cristianismo, devorei uma bíblia em 18 volumes. E fui me enfronhando nos romances russos, brasileiros, ingleses, franceses, enquanto... “lá fora” acontecia o Golpe de 64.
Assim,
foi longe deste insensato mundo que me casei em 65, eu e Ione tivemos Dmitri em 66, Andréia em 67, ao tempo em que – sem alterações em meu projeto de vida - me tornei subgerente da agência justamente em 68 – esse bendito ano “que não termina”– e vi, à distância, o que acontecia no mundo, através de revistas que aqui e ali me chegavam, alguma coisa pelo rádio – pois não havia TV na cidade. Dos jornais, contava apenas com A União, que o BB recebia por causa do Diário Oficial.
Turma do BB Pombal

Não entendi como quem quer que fosse poderia pender pra esquerda ou pra direita, pois se, de um lado, os americanos massacravam – e eram massacrados - no comunista Vietnã, causando protestos por toda parte, principalmente nos Estados Unidos, inclusive através do grande sucesso do musical Hair, na Broadway,

do outro, Dubcek assumia o governo da Tchecoslováquia (hoje República Tcheca) e iniciava uma série de reformas políticas, sociais, econômicas e culturais - o que passara a se chamar Primavera de Praga - num movimento de massas em busca de um "socialismo humanizado", crítico ao regime stalinista da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas -, que acabaria gerando uma reação brutal, russa, em agosto, com as tropas do Kremlin invadindo a Tchecoslováquia, o que você pode ver e ler em A Insutentável Leveza do Ser – romance e livro.
Pois bem,
montéquios e capuletos se engalfinhavam em minhas noites e madrugadas, quando, no dia 16 de março, o exército norte-americano executou 504 civis vietnamitas num ato que ficou conhecido como Massacre de My Lai. No dia 27 morreu o cosmonauta soviético – herói universal – Yuri Gagarin - o primeiro homem a ir ao espaço, e, no dia seguinte, 28 – enquanto um Karamazov discutia com outro, numa Perspektiva Nievsky qualquer - foi morto, no Rio, o estudante paraense Édson Luís, que se mudara pra lá, pra fazer o segundo grau. Como foi, como foi? E fiquei sabendo que os estudantes tinham feito uma passeata-relâmpago pra protestar contra a alta do preço das refeições no restaurante Calabouço, quando a polícia militar chegou. O comandante da tropa - aspirante Aloísio Raposo - atirou e matou o secundarista com um tiro à queima-roupa no peito... e foi um deus-nos-acuda. Temendo que a PM sumisse com o corpo de Édson, os estudantes não permitiram que ele fosse levado pro IML e o carregaram em passeata diretamente para a Assembléia Legislativa , onde foi velado.
O Rio parou.
Édson foi enterrado ao som do Hino Nacional, cantado pela multidão.
Tudo muito emocionante, mas - como diz o poema de Brecht – eu não era estudante e não tinha nada a ver com isso. Porque, além disso, estava havendo uma guerrilha no Araguaia - mas eu não era comunista, o que me cabia? A família a cuidar, a carreira, não tinha nada a ver com aquela agitação toda... “no resto do país... e do mundo”.
Aí,
em abril,
o filme 2001 – uma odisseia no espaço,
foi lançado nos cinemas do mundo inteiro e – aquilo sim, me abalou: me larguei de Pombal, no meu fusca, pra ver a obra-prima no Recife, e foi um impacto sair de uma cidade em que a água era distribuída em carros de boi, sem livrarias nem bancas de jornais, comunicação com outras cidades apenas através de radioamadores, e me deparar com aquela viagem a Júpiter prevista pra 2001, quando, lá, seria encontrada a mesma laje lisa e negra, na vertical, que os homens das cavernas tinham tido diante de si, ... sem entender o que significava, a não ser o mistério de tudo isso que nos cercava e cerca. A vida, pra mim, era o enigma humano, que eu vinha enfrentando na leitura de caras como Aristóteles e Platão, Schopenhauer, Shakespeare e Dostoiévski.
No mesmo abril de 68,
ocorreu a primeira grande greve no Brasil, desde que os militares tomaram o poder, em Contagem, Minas, reivindicando um reajuste salarial de 25%. A repressão foi grande, grande a resistência... e se conseguiu 10% de aumento, bastante pra estimular outros sindicatos a irem a luta. Mas – “como diz Brecht” - eu estava longe dos sindicatos e ganhava muito bem.
Aí Luther King foi assassinado – nesse mesmo abril – mas... – caramba - eu não era negro, o que tinha a ver com aquilo? Bob Kennedy foi baleado em junho – mas eu não era americano, problemas deles! E, entre aquelas duas mortes de enorme repercussão,
a enorme influência de um filósofo judeu alemão naturalizado americano – Herbert Marcuse – que se tocou no fato incômodo de que Marx dissera, no Manifesto Comunista de 1848; “Proletários de todo o mundo, uni-vos!” – sem que nada acontecesse nesse sentido, pelo que Lênin – 69 anos depois - contratando revolucionários profissionais, alegando que operários trabalhando 18 horas por dia jamais iriam entender porra nenhuma de economia e política, tomou o poder numa Rússia... agrária, onde, obviamente, tudo daria errado. Marcuse, então, descobriu Freud, exatamente no momento em que a pílula anticoncepcional passara a significar sexo livre de procriação! Do somatório de tudo isso, veio a Revolução de Maio de 68, iniciada por estudantes da Universidade de Paris, escorada numa greve geral de trabalhadores franceses. O estopim da agitação foi a Universidade de Nanterre, nos arredores da capital, em 2 de maio. Havia semanas os estudantes vinham entrando em conflito com a polícia , depois que decidiram ocupar a universidade, protestando contra a burocracia da instituição que, entre outras coisas, impedia os alunos de dividirem os quartos da residência estudantil com colegas do sexo oposto.
Isso tudo também não me interessava: ao contrário daquela estudantada toda, eu tinha uma mulher que amava e, pelos eventuais filhos que tivera ou teria com ela, eu me responsabilizava.
Em pouco tempo, os alunos de Nanterre ganharam o apoio dos estudantes da Universidade de Sorbonne, que tomaram as ruas do Quartier Latin, em Paris. Os sindicatos de trabalhadores da França decidiram cruzar os braços e ocupar as fábricas, cobrando do governo melhores salários e condições de trabalho.
A revolta dos estudantes franceses ganhou apoio de artistas como os cineastas Truffaut e Godard - que incentivaram um boicote ao Festival de Cinema de Cannes naquele ano -, além de inspirarem músicas dos Beatles (“Revolution”) e dos Rolling Stones (“Street fighting man”).
Claro que isso tudo acabou ressoando no Brasil. No dia 26 de junho – ainda com enorme revolta pelo assassinato do Edson Luís - , houve a passeata dos 100 mil pelas ruas do centro do Rio de Janeiro contra a violência do governo, protestos por todo o país – ... menos em Pombal. Vi amigos enterrando livros, escondendo armas,
PORÉM
justamente naquele momento tomou posse na agência um novo colega,
Ariosvaldo Coqueijo,
que trazia uma vontade enorme de mostrar ao pessoal de teatro de João Pessoa do que ele era capaz. Jamais perguntei nem ele me disse do que se tratava. Eu não tinha nada com isso. Chegou com um maço de recortes de revistas e jornais sobre a morte do Édson Luís, pedindo a mim e ao Bezerra que escrevêssemos um texto teatral pra ele, sobre o assunto. Bezerra foi muito louco: disse que eu poderia ficar com a tarefa, pois estava preparando um texto pra si mesmo, Canudos, sobre Antônio Conselheiro e o Arraial do Bom Jesus, na Bahia.
E aceitei!
Coisa maluca, pois o que eu já vira de teatro, na vida? My Fair Lady – com a Bibi Ferreira, em São Paulo, e Paraí-be-a-bá, do Paulo Pontes, que o trouxera a Pombal. E leitura apaixonada do teatro grego e das peças de Shakespeare, claro.
Ariosvaldo disse:
- Pois faça um texto curto, em cima de muito visual, pois a Censura está terrível. Quando ele disse isso, imediatamente vi a silhueta de uma multidão de jovens esmurrando uma hipotética parede de vidro que fecharia a boca de cena - abafando todo o som, até que aquilo se arrebentava e a zoada seria imensa.
Escrevi a peça naquela noite e o Ariosvaldo começou a montar o espetáculo no dia seguinte, com os mesmos 30 estudantes que figurariam na peça do Bezerra.
Um dia ou dois depois, disse-me que O Vermelho e o Branco ficara curto demais. Se não daria pra eu criar umas quatro ou cinco músicas pra estender algumas cenas. Era uma proposta muito doida: eu jamais criara nem criaria música alguma depois . Arranjei um gravador, escrevi cinco poemas e, no dia seguinte, levei o resultado gravado para o Ariosvaldo. Entre outras coisas havia um hino frenético que começava com a frase de Júlio César “Se queres a paz, prepara logo a guerra!”, isso pra abrir a peça.
Bem,
continuei a vida de burocrata de dia, a ler até meia noite e acordando às três, pra ler mais, convivendo, ainda, com a família, a que sempre tive muito apego.
Aí o Bezerra me disse:
- Acho melhor você ir dar uma olhada nos ensaios. O cara que faz o líder estudantil não está nada bem no papel.
Fui e - coisa de folhetim – o sujeito faltou. Ariosvaldo pediu que eu tomasse o lugar dele, pra não perder o ensaio. Aí, bastou que eu agarrasse a bandeira brasileira , em meio ao hino de guerra, no fundo do teatro, e de repente partisse no meio da plateia, berrando, com aqueles 30 rapazes e moças correndo atrás, saltando – eu e todo mundo - ao palco, pra tomada do restaurante, para que o Ariosvaldo dissesse: “Você vai ser o líder estudantil”.
- Ei, ei, ei: Não! Não sou nem quero ser ator... e tenho horror ao palco!
Mas foi assim que, de repente, me tornei autor teatral, compositor e ator, de uma só tacada.
Claro que meu texto era singelo. Como o de Eisenstein, que jogara fora um roteiro enorme, que contava todo o ano de 1905, e se concentrara só no que houvera em torno da Escadaria de Odessa e do Couraçado Pontekin. Eu fechara o espetáculo na preparação e consequências imediatas do movimento no Calabouço.
Além das músicas, funcionavam jograis – influência dos dramaturgos gregos - em que grupos de figurantes declamavam em uníssono ou em várias vozes. No enterro do Édson, criei um “reto tono” que viraria um samba, que cresceria em coral, e acabei – apesar de não cantar coisa nenhuma - dando também uma de tenor: Para a apresentação aqui no Santa Roza, gravei com um padre, não me lembro de que igreja, acompanhado de órgão ou serafina, não me lembro : “A morte vem/ um dia qualquer a morte há de chegar, eu sei / mas morreu hoje um,/ meu deus, com o sangue no peito, por nós, e é com isso que não podemos mais nos conformar!” – ao que entrava a bateria e descíamos do palco e passávamos pela plateia com o caixão do menino nos ombros. Ao passar pela plateia, com um lenço cobrindo a boca, eu via, aqui e ali, gente chorando.
Em compensação, quando já tínhamos o restaurante dominado, soava a sirene da polícia, nossa estudantada recuava, com medo, eu avançava, gritando: “Eu ofereço meu sangue pra que o mundo fique ainda mais vermelho!” - e vi – aqui no Santa Roza - gente debandando, talvez supondo que a sirene – que era do carrinho de brinquedo de meu filho – fosse de verdade.
Claro que aquilo tudo mexeu comigo e me levou, no ano seguinte, a jogar todas as fichas – jogar, mesmo, pois perdi o que tinha e o que não tinha na aventura - no primeiro longa-metragem paraibano – O Salário da Morte – produzido e rodado lá em Pombal, em mais uma iniciativa do Bezerra.
Poucos dias depois dos primeiros ensaios de O Vermelho e o Branco, bateu-me forte angústia durante o expediente no BB: eu estava envolvido com algo que não era de minha índole. Puxei uma tira de papel da máquina de calcular – daquelas que havia, antigamente, antes do computador - e escrevi – de uma tacada só – um poema em que, de repente, lamentava prever meu futuro como o de um... burocrata. Mal terminei os versos, mostrei-os ao Ariosvaldo. “Maravilha – ele disse - : vou entrar em cena com este monólogo”.
E foi impressionante: não vi um ensaio sequer em que ele terminasse a fala, que sempre interrompia prostrado, em lágrimas.
E, assim, fiz um monólogo pra mim também, a fim de equilibrar nossas entradas.
Detalhe:
Ariosvaldo, pensando em como ludibriar a censura, me pedira que transportasse a ação pra Paris. Daí que ele entrava num elegantíssimo Pierre Cardin, enquanto eu surgia em seguida com camisa vermelha, tênis, charuto, alguns livros e... barba – que me rendeu enorme problema com o gerente. “Ei, você não está pensando em dar expediente assim, heim?” “É só um papel no teatro, todo mundo na cidade sabe disso!” “Por que não usa barba falsa?” “E por que, se tenho a minha?!” “Porque isso tá me parecendo coisa de cubano!” “Por que não de Jesus Cristo?” “Você tem de raspar essa barba”.
Nunca me permiti dar pé a censura de superiores, e, de repente, aquilo, eu dizendo: “Só se você me mostrar qual a instrução que me obriga a fazer isso”.
Na verdade, fora do ambiente bancário - todo de camisa branca abotoada nos punhos e gravata - a barba e os cabelos compridos estavam na moda.
Bem.
Devido ao pavor a público, fui me socorrer com meu grande amigo, Dr. Atêncio, tio de minha mulher, médico. Pedi que me passasse um tranquilizante.” Deu-me Psicosedin – o mesmo que eu usaria pra enfrentar o Zé Américo, quando escreveria Zé Américo Foi Princeso No Trono da Monarquia – editado pela Codecri, anos mais tarde. Mas não foi o bastante. Fui ao teatro do colégio, na estreia, com um litro de Campari debaixo do braço – e o tomei todo, antes de entrar em cena. Ariosvaldo, descontraído, riu: “Calma!: Quando entrar, fique um tempo sob o spot, acenda o charuto, deixe a plateia te olhar bem e comece”. Fiz isso. E comecei: “Tenho 27 anos, estudo sociologia e me chamam de Gagarin.”
Nunca soube de qualquer repercussão na cidade. Fui ao expediente, no dia seguinte, como se nada tivesse feito de... diferente. Mas claro que tivemos o apoio de toda Pombal, no ano seguinte, para a nossa empresa de cinema, por causa de nosso 68.
Apresentamos O Vermelho e o Branco em Pombal, Catolé, Sousa - a pedido do então prefeito, Antonio Mariz, e – por último – demos nossa apresentação numa noite de domingo, no Santa Roza, dentro de um festival nacional de teatro. Tudo transcorreu sem surpresas, mas Altimar Pimentel, quando fui me despedir dele, me deu um esporro: “Como é que você traz um panfleto desse pro meu teatro?”
Curioso:
com toda a repressão vigente, a censura dispensava, no festival, a liberação federal, bastando a entrega de uma cópia do texto à polícia, pra que a mandasse pra Brasília. Isso iria piorar bastante, depois.
E, bem,
voltei – barba raspada - à vida normal
e vi o ano culminar com o ato institucional número 5, o célebre AI -5, em 13 de dezembro. Ao todo, por conta dele, foram vetadas 44 peças de teatro. Nos 10 anos do Ato Institucional, mais de 400, além de 500 filmes, 200 livros, milhares de músicas. Vai daí que, algum tempo depois, um amigo veio me dizer no banco, logo de manhã: “Acabo de ouvir a notícia no jornal falado da Tupi de que sua peça foi proibida em todo o território nacional, por ferir a dignidade da pátria e ser capaz de sublevar os ânimos da juventude.”
Tenho – disso tudo - apenas um recorte de jornal em que Carlos Aranha deu a manchete: “POMBAL, A GRANDE SURPRESA DA SEMANA”. Mas nunca sofri nenhuma repressão - do banco ou fora do banco - por causa da peça. Talvez porque, pensando bem, que perigo eu representava? Não tinha expressão alguma. Geraldo Vandré - paraibano - foi preso e exilado. Caetano e Gil foram presos. Norma Benguel foi sequestrada e espancada, o elenco do Roda Viva, do Chico Buarque, agredido. Acho que me viram na agência do BB em Pombal - para onde dois colegas - Gussão e Fernando - tinham sido removidos como castigo por alguma denúncia de subversão, e acharam que estar lá já deveria ser o bastante. Ninguém conhecia Pombal, a não ser pela história de Maringá.
*Escritor, cordelista, ator e artista plástico
O QUE FOI O MEU 68 O QUE FOI O MEU 68 Reviewed by Clemildo Brunet on 5/28/2018 09:04:00 AM Rating: 5

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