As sombras luminosas da roda gigante
Ricardo Ramalho |
Ricardo
Ramalho*
Nossa Senhora da Conceição, padroeira de
Areia, chegava, com sua festa anual e anunciava o final do ano e as férias
escolares. Trazia, uma brisa suave de romantismo e bem querer no ambiente,
induzia novas reflexões e desejos.
Vencidas as tensões das provas finais,
os espíritos se acalmavam e as mentes se entregavam, ao enlevo das paixões,
naquele meio, de jovens estudantes da Faculdade de Agronomia e dos colégios
secundaristas areienses.
Como era professor de biologia, em
Alagoa Grande, mesmo sem mais obrigações estudantis, permaneci em Areia, para
concluir as atividades, naquela cidade vizinha. Estava em desencanto com os
namoros passados e presentes, naquela época. À procura de novos relacionamentos,
me entregava à busca de novas emoções.
Há tempos observava uma garota local.
Sua delicadeza de gestos, seu andar, sua aura, me indicavam, estar ali, uma
fonte de felicidade. Um impedimento me afastava, me retirava esperanças:
namorava firme com um seu conterrâneo. Não teria chances. Ficava restrito à
admiração, ao sonho impossível.
Naquele ano, naquela festa, soube do inesperado:
o rompimento do namoro, obstáculo à minha pretensão. Surgia a aguardada
oportunidade. Em verdade, não havia correspondência, aos meus tímidos e
furtivos olhares. Tampouco, poderia esperar essa atitude. Em tempos de tanto
rigor nos comportamentos, de irrestrita lealdade entre namorados, especialmente,
feminina, dificilmente aconteceria. Mas, o momento se apresentava diferente.
Em uma das noites da festa, encontrei-a,
desacompanhada do ex-namorado. Situação rara. Confirmava-se o boato e
alimentava-se minha esperança. A tática, de então, consistia em olhar e sentir
se haveria retorno, com uma mínima fixação visual. Seria o sinal para uma
aproximação. Da mesma forma, retribuiu meu sentimento. Nada mais que um
lampejo, apenas. Com uma colega, vi quando se dirigia à roda gigante, o
brinquedo mais atraente do parque de diversões. Fiquei a ver, a pretendida,
naquela altura inalcançável. A cada rodopio do brinquedo, ressurgia a esperança
de renovadas trocas de olhares.
Em geral, um cone de difusão de músicas,
postava-se nas rodas gigantes. Dele ouviam-se os sucessos do momento. O grego
Demis Roussos, com sua voz dolente e harmoniosa, espargia suas canções pelos
ares. Embora, em inglês, emocionava e transmitia ternura. Muitas melodias
marcaram esse artista. Uma especial me entranhava: “Shadows” (Sombras). Sua sonoridade
enebriava aquele momento. O “monstro”
rodante brincava com meus sentimentos. Afastava e aproximava a garota, sem
permitir investidas. O cantor dominava, com sua poesia melodiosa: “Sombras de
mil faces ficam passando em sua mente’ (shadows of thousand faces, keep on
turning in your mind), ‘silenciosamente elas parecem demorar, em qualquer lugar
para o qual você possa correr’ (silent they seen to linger)”. O tempo das
rodadas acabou. A música terminou. A festa se esvaziava, pelo avançar da noite.
Seguiu para sua residência. Observei, com desânimo, aquele lento caminhar,
repleto de charme. As luzes se apagavam, enchendo de sombras o que há poucos
minutos era claridade.
Nos dias que se seguiram, me envolvi com
os últimos compromissos de professor, no final do ano letivo. Não mais a vi.
Vieram as férias em minha cidade. Ao retornar para o reinício das aulas, soube
que o antigo namoro fora renovado. Ficaram as lembranças e as vibrações de
“Shadows”, em minha mente.
*Cronista
pombalense radicado em Maceió - Alagoas
As sombras luminosas da roda gigante
Reviewed by Clemildo Brunet
on
6/24/2018 09:34:00 AM
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