ÉPOCA RURAL E URBANA
Severino Coelho Viana |
Por Severino Coelho Viana*
A região Nordeste tem seus
aspectos diferenciados perante o quadro nacional, pela forma como se apresenta,
levando-se em conta a sua localização geográfica, as condições mesológicas do
ser humano, as decisões políticas ante o poder central, o semblante do ser
humano pelas necessidades que vive, o misticismo e as crendices que o envolveu
espiritualmente, herdado do povo africano, além dos costumes, usos e folclore
que ficaram como legado das diversas raças contribuidoras do seu povoamento.
Se observarmos do ângulo
climático, detectamos somente duas estações do ano: o inverno e o verão,
consequentemente frio e calor; não o frio que obriga a pessoa a usar
vestimentas peludas, mas o calor que desobriga usar camisa. O nordestino, em si
próprio, adora a estação do inverno, até pelo seu meio de sobrevivência que
nasce da agricultura. A chuva são as lágrimas dos olhos de São Pedro, que com
muita piedade vêm aliviar o sofrimento do homem do campo. O açude enche e planta-se
na vazamente, o rio transborda que inunda as vilas e ruas periféricas,
começa-se o preparo da terra com o trabalho braçal, na sua forma rudimentar,
como a enxada, o arado e a capinadeira, uma vez que não alcançou o processo
tecnológico. Ao amanhecer, no cantarolar do galo, madrugada fria, tempo
enevoado, logo cedo, o caminhar pela estrada: o homem, o menino e o cachorro. O
homem de sandália de rabicho, uma calça tipoia regaçada, camisa rasgada, chapéu
de palha na cabeça. O menino conduz uma quartinha d’água, um saco no ombro
contendo rapadura e farinha, é a boia, o lanche, e na hora do almoço o feijão,
o cuscuz, carne de jabá. Nesta cena a vida corre debaixo do pé de juazeiro, e
ao lado, ainda, uma cadela emagrecida que fareja a boca do preá. Este é o
aspecto visto do lado do camponês, porque o outro lado da moeda mostra a face
do poderio, luxo, ganância, prepotência e bonança material.
Mas, contornemos, este homem
sofredor é grato a Deus, agradece porque enviou a chuva, limpa a terra, faz o
seu roçado, planta feijão, milho, arroz, mandioca e algodão, enquanto que o
coronel domina o plantio da cana-de-açúcar. Nesta fase do ano nem sempre vive
de bonança, às vezes, o inverno ultrapassa as profecias do Preto Velho, pois a
lua não mostrou, com nitidez, durante quatro semanas consecutivas, o cavalo
erguido de São Jorge, as manchas inibiram a decifração do Preto Velho; o
domingo de carnaval trouxe chuva demais; a quarta-feira de cinzas de tão
molhada virou papeiro; o dia de São José de tão chuvoso que se pode preparar a
canoa. E, ao invés da bonança, da fortuna, vem a abundância do aperreio. Os
açudes arrombam e devastam todo o plantio, os rios alagam e invadem casas,
casebres e taperas...
— E o que foi isso, nosso Deus?
— Castigo!
É coisa pra castigo! Noite de
terror, dia de sofrimento. À noite, o homem não tira o olho do céu, vê a lua,
as estrelas, as nuvens e as manchas de São Tiago. E pergunta:
—
Será que ainda vem mais chuva?
A casa de taipa destruída pelo
açude que arrombou a casa de tijolo invadida pela água do rio que transbordou.
Renascem o abandono, a penúria, a lástima, o pedido de socorro, mas também, a
fé.
A mulher chora em pranto porque
vive ao relento, expulsa de sua casa, olha no canto da parede de um grupo
escolar e vê seus móveis: tamborete virado, mesa de pernas bambas, xícaras
quebradas, colheres e pratos espalhados pelo chão, marmita fervendo no fogaréu
e panelas secas. O homem, ou melhor, o marido, cachimbo na boca, lamparina na
mão, fósforo e papel de cigarro no bolso, e ainda, é claro, uma faca-peixeira
no quadril, a proteção da vida, da família e da honra. As enchentes passam,
logo o sol seca as terras, é o recomeço de tudo!
Já o inverso ocorre no verão. O
Preto Velho declara, alto e bom som:
— Este ano é seco, e é! As experiências
do ano tal, do mês tal-que-tal, que ano de número impar, é seco.
Mas, por incrível que pareça,
todo mundo acredita nas palavras do Preto Velho, “todo mundo”, os que rodam a
sua vizinhança. Ele, o Preto Velho, tem o dom da seca e do inverno. Numa cena
melodramática, acende o cachimbo, respira profundo, olha para o céu, como se
tivesse vendo algum sinal, e manda o verbo:
— É seco! O cavalo de São Jorge
está cansado, por isso a espada não está afiada, o domingo de carnaval; dia de
São José, também não. E assim prossegue a ladainha de todos os anos secos, da
sua época, seu pai, seu avô e bisavô, conta as estórias lamentáveis e tristes,
que arrepiam velhos e assombram meninos.
E o ano é seco.
*(Este texto foi retirado do livro de nossa
autoria, intitulado de “Amor de Cangaceiro”, PP 11/17, publicado pela Rigrafic Editora Ltda, 1998)
SEVERINO
COELHO VIANA
ÉPOCA RURAL E URBANA
Reviewed by Clemildo Brunet
on
3/11/2019 11:22:00 AM
Rating:
Nenhum comentário
Postar um comentário