O IRMÃO ANTÔNIO
José Gonçalves |
Por José Gonçalves do Nascimento*
A cidade
ainda dormia. Melhor: poderia está ainda dormindo, não fosse o menino da
matraca que desde o miudar do galo intimava os crentes para a oração matutina
que começaria logo mais. O lombo da serra, com suas casinholas brancas,
solenemente distribuídas, começava a despontar. O moço da prefeitura, de
uniforme branco, chegava para apagar o último bico de luz que ainda se mantinha
aceso na praça grande e deserta. No céu, uma revoada de pardais quebrava por
alguns instantes a quietude do silêncio. Talvez quisessem saudar os raios do
sol que logo logo começariam a romper. Não tardaria muito, e o sineteiro
executaria os primeiros dobres do sino, emprestando ao ambiente a cerimônia que
a ocasião exigia.
Irmão
Antônio chegou ao romper do dia daquela Sexta-feira Santa. Viera de longe, os
pés calejados, o corpo coberto de poeira. Parou em frente à matriz, que ainda
se mantinha fechada, ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e rezou. Em seguida,
olhar fixo, sereno, compenetrado, surrão sobre as costas, dirigiu-se ao Tangue
da Nação, apeou, e montou seu acampamento. Bebeu água numa cuia, comeu o último
pão que lhe restara da viagem, e descansou. Precisava recobrar sustança, física
e espiritual, para a jornada que prometia ser muito intensa. Viera para pregar.
A
Sexta-feira da Paixão era, ali, o dia mais esperado do ano; era a síntese de
todas as comemorações. Nela, a fé religiosa e o sentimento pátrio adquiriam a
mesma significação. Juntos, sagrado e profano dividiam o mesmo altar na solene
e festiva liturgia. A data era o símbolo da unidade, da convergência, do
congraçamento. Todos se viam nela e por meio dela. A cada ano, a cidade se
atapetava de gente vinda de todas as partes. Chegavam de pau-de-arara,
carroças, animais, ou mesmo a pé. Eram homens, mulheres, crianças, gente
enferma, pagadores de promessa, caixeiros viajantes, vendedores de passarinhos,
mascates, cantadores, violeiros, retratistas, benzedeiras, cartomantes,
adivinhos, garrafeiros, bebedores de cachaça, esmoleres, todos reunidos no
mesmo mutirão de encantamento.
À tarde,
quando o sol começou a pender, e o sino da matriz deu as primeiras badaladas,
Irmão Antônio, que passara a manhã inteira em meditação, irrompeu na grande
praça, onde uma multidão aguardava devotamente. Tinha cabelos e barbas
crescidos, já um tanto agrisalhados, envergava um hábito marrom, cingido por um
alvo e grosso cordão, e calçava alpercatas de couro, tipo as de vaqueiro.
Chegou, aproximou-se do altar, persignou-se, assomou à latada, posta ao lado do
grande cruzeiro, e pregou:
– Louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo! – saudou.
– Para
sempre seja louvado tão Bom Senhor! – responderam.
– Meus
irmãos, – prosseguiu – uma voz gritou no deserto, chamando pela Luz; e a Luz
alumiou o escuro do deserto; os corações aflitos ficaram inebriados com o mel
que jorrou da fonte da vida; o mundo todo se encheu de fartura e a beleza
brotou do ventre da terra; as moléstias calaram a voz para sempre; a dor que
doía na gente virou nuvem e voou; os montes e as florestas dançaram ao som da
brisa matutina; as correntes se derreteram e viraram pão; as cercas ruíram, os
cabrestos se quebraram, e os animais puderam pastar sem atropelos; a liberdade
virou passarinho e veio morar perto da gente; os rios se regurgitaram de água
doce, matando a sede que não tinha fim; as roças se encheram de espigas de
milho verde; os campos se vestiram de amor e os bem-te-vis cantaram uma canção
de contentamento; mas um dia, o dragão da maldade, que era dono da fé e do
ouro, teve muito medo e mandou prender a Luz; e a Luz foi castigada, apagada,
humilhada, silenciada.
Parou,
sacou do bolso do hábito um lenço encarnado, enxugou o suor que escorria no
rosto, e continuou:
– Pois
bem; ontem como hoje, os dragões da maldade vivem à espreita da luz; trabalham
no silêncio da escuridão, como monstros medonhos, terríveis; são os espíritos
da cegueira, que nunca viram o fogo do amor, que é onde mora a semente da paz;
vivem fuçando nos palácios cinzentos; nas mansões subterrâneas; nos templos sem
portas e sem janelas; no mundo do lucro desonesto; dormem nos cassinos,
farreando a noite toda com o dinheiro que ganharam na exploração do trabalho
alheio; se comportam como os senhores do bem, aparecem no jornal, na televisão,
nos banquetes; vivem de derramar o veneno da maldade no leito dos mais pobres;
maquinam contra os amigos da justiça, tomam as terras, matam os índios,
segregam os negros; morrem de ódio ao povo e à poesia; falam o nome de Deus em
vão, profanam contra o santo Evangelho e perseguem os missionários.
O sermão
chegara ao final. Uma nuvem densa cobrira o sol, enquanto a multidão, contrita,
se aproximou do altar. Era o momento do beija da cruz.
A
cerimônia terminara, o sol ainda não se tinha posto. Os romeiros começaram a se
recolher, uns indo pra suas casas, outros se abarracando nas carrocerias dos
caminhões. Havia também aqueles que se aboletavam na matriz, à espera da
vigília noturna.
Irmão
Antônio deixara a praça em silêncio, olhar atento, atribulado, como se
pressentisse alguma coisa. Ia ao encontro do velho surrão. Mas, ao se aproximar
do local do acampamento, encontrou apenas as cinzas. O prefeito mandara queimar
sua barraca.
Irmão
Antônio não disse nada, não esboçou reação, apenas rezou. E, meditativo, passos
lentos, desfiando um rosário, deixou a freguesia, tomando a estrada do norte.
Era noite.
*Poeta e Escritor
O IRMÃO ANTÔNIO
Reviewed by Clemildo Brunet
on
3/11/2019 09:49:00 AM
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