A PEDRA QUE ROLOU DO CÉU
José Gonçalves do Nascimento |
Por
José Gonçalves do Nascimento*
A lua subia grande e
luminosa, parecendo estar mais perto da terra. (Até São Jorge, montado no
cavalo branco e espetando um dragão sob os pés, parecia maior do que o
habitual). Nuvens grossas formavam ondas em torno do disco prateado, desenhando
seres de todos os tipos e formas. Embaixo, o clarão se derramava sobre a
paisagem solitária, fazendo entrever aqui e ali a copa dum umbuzeiro, o telhado
duma casa, ou um animal a vagar. A alguns passos, no galho de uma aroeira, uma
coruja entoava um canto nostálgico. Na frente da casa, a pequena fogueira feita
para afugentar as muriçocas lançava chama e luz, como que a competir com a
claridade da lua. A cachorra sereia, deitada com o queixo apoiado sobre as
patas dianteiras, mantinha o olhar atento, ora sobre as brasas que crepitavam,
ora sobre o pouco movimento que ocorria no entorno. O vento fresco que açoitava
do leste agitava suavemente os galhos das canafístulas que adornavam o terreiro
grande e aplainado.
Sentado à beira do
fogo, numa tora de pau, João Grande sorveu o último gole de café. Em seguida,
acendeu um cigarro de palha, soltou duas ou três baforadas e correu o olho no
céu. Deu mais uma baforada, olhou para mim, que estava do outro lado da
fogueira, e disse:
— Nininho.
— Oi.
— Tô vendo essa lua
grande aqui em cima e me lembrando duma coisa. Você já viu falar na pedra do
Bendegó?
— Não, senhor. —
respondi.
Endireitou-se,
consertou a garganta, e continuou:
— Foi há muito tempo
atrás; o sertão era verde que dava gosto; era bonito de ver aquele mundão de
flor se espraiando pra longe, feito um mar que não tinha fim; os rios, os
riachos, as lagoas, tudo empanzinado despejando água pelos beiços; frutas davam
de magote enchendo a barriga de todo tipo de vivente; os bichos passeavam
faceiros, fazendo a alegria da mata; os homens que moravam ali eram como os
passarinhos: não ajuntavam riqueza, não tinham celeiros, mas sempre tavam com a
pança bem cheia; as terras ainda não tinham cerca e eram livres como as
andorinhas; um dia uma pedra rolou do céu e caiu naquelas bandas fazendo o
maior arvoroço; parecia inté que o mundo ia se acabar; era uma bola enorme que
vinha queimando as nuvens e alumiando o sertão como nunca se viu; desceu igual
uma espada de fogo, furando o chão e estraçalhando tudo que via pela frente; o
mundo todo caiu aturdido com o ronco daquele bicho medonho desabando das
alturas e se estatelando aqui embaixo; os homens da terra chamaram a tal da
bola de pedra cuitá, e enquanto viveram ali adoraram aquilo como se fosse um
milagre caído do céu; e assim foi por muitos e muitos anos.
João Grande parou,
acendeu mais um cigarro, correu de novo o olho na abóbada celeste, e continuou:
— Então, sucedeu que um
vaqueiro foi prear um marruá brabo que tinha destraviado e aí de repente deu de
cara com um troço estranho no meio dos matos; no princípio pensou que fosse uma
bezerra deitada no meio dos gravetos, mas quando chegou pra perto o que viu foi
uma pedra enorme, cor de bronze, bonita de fazer gosto; o vaqueiro estremeceu
de tanta imoção e ali mesmo arresorveu de dar um nome pra aquela boniteza;
chamou aquilo de pedra do Bendegó, porque ali corria um rio com esse nome; a
notícia se espraiou igual um vento e uns homens de longe entonce apareceram por
lá pra estudar aquela preciosidade; o governador da província quis levar a
pedra pro palácio, mas a pedra não quis ir; muitos anos depois o rei resorveu
que queria a pedra perto dele e pra isso despachou pro sertão uma enxurrada de
gente que mais parecia um batalhão marchando pra uma guerra; e era mesmo uma
guerra; os homens chegaram sisudos, arrancaram a pedra com a força das armas, e
botaram ela em cima de uma carroça pra ser arrastada por juntas de boi; feito
isso, sumiram no meio do mato, abrindo varedas, cruzando riachos, e dormindo no
relento, igualmente uns bicho bruto; depois de muitas semanas viajando naquelas
catingas, subindo e descendo serra, a pedra chegou na estação do trem e dali seguiu
pras terras grandes pra morar perto do rei.
Sereia, que até então
se mantivera deitada, agora se entretinha com um sapo, que vinha cruzando o
terreiro. A fogueira expeliu as últimas labaredas, deixando apenas um montículo
de cinza e carvão. João Grande lançou um último olhar em minha direção e
inquiriu:
— Nininho.
— Oi.
— Tá vendo?
— Não, senhor.
— A coruja se calou!
— Acho que ela se foi!
— disse eu, bocejando.
A lua descambou rumo ao
poente. Era hora de dormir.
*Poeta
e Escritor
A PEDRA QUE ROLOU DO CÉU
Reviewed by Clemildo Brunet
on
4/14/2019 05:55:00 AM
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