NELSON GONÇALVES, A VOZ DO BOÊMIO NÃO CALA
Francisco Vieira*
Não é exagero nenhum, mas o Brasil é um país sem memória.
Não bastasse o descaso com o património histórico, também o
mundo artístico sofre com a mesma indiferença. São poetas, compositores,
cantores, atletas, artistas diversos que padecem no ostracismo. Nomes como
Francisco Alves, Gonzagão, Jackson do Pandeiro, Garrincha e até vivos a exemplo
de Pelé e Zico, se não totalmente esquecidos, são pouco lembrados, salvo em
raras e tímidas homenagens.
Digno de elogios saber que a Argentina e Estados Unidos
reverenciam anualmente seus maiores ídolos, Carlos Gardel e Elvis Presley. A
propósito, sentenciou Nelson Gonçalves: “quando morrer quero ser cremado para
não fazerem xixi em minha tumba”.
Como o poeta, o cantor também não morre. Os versos imortalizam
o rimador, a voz eterniza o cantor. Ambos são imortais, como são todos os
filhos da arte.
Dia 21 de junho de 2.019, marca o 100º aniversário de
nascimento de Nelson Gonçalves, um dos maiores cantores do Brasil e do mundo. Hoje,
imortalizado pela velha guarda, quiçá receba homenagens condizentes com sua
grandeza.
Por razões óbvias tributo ao cantor, minha reverência. Um
breve relato basta para justificar sua importância.
Como o espinho para furar de pequeno traz a ponta, Nelson
manifestou tendências musicais muito cedo. Ainda menino, cantava sobre caixotes
- seu primeiro palco - nas praças do Brás, capital paulista. A voz excepcional fez
merecer os apelidos de Carusinho e Rouxinol, mas, Metralha, foi o mais
conhecido, devido rapidez no falar.
Como prenúncio de vitória destacou-se como boxeador, vencendo
na carreira 24 lutas por nocaute e perdendo apenas duas por pontos, fazendo jus
ao título de Campeão Paulista de Pesos-Médios.
A afinação impecável em barítono era causa de admiração e
aplausos. A respeito, argumentavam os críticos: é mais fácil entoar o agudo de
Agnaldo Timóteo que o grave de Nelson Gonçalves.
Se procede a expressão idiomática “o bom já nasce feito”,
somente o Metralha era capaz de gravar sem ensaios. Em tom jocoso assim diziam:
Nelson grava um disco enquanto o taxista aguarda na porta da gravadora.
Predestinado, iniciou a carreira com as músicas: Sinto-me bem
e Se eu pudesse um dia, despontando para o sucesso. Romântico acima de tudo,
porém versátil, cantou diversos ritmos, gravou com grandes nomes da MPB e interpretou
os melhores compositores, principalmente Adelino Moreira, seu grande e fiel
parceiro. Ainda foi além fronteira, lançando discos em Portugal, Alemanha,
Itália e outros países.
Graças à voz potente, riqueza melódica e letra, alcançou grande
popularidade, tornando-se recordista em vendagem de discos e produzindo cerca
de 2.000 músicas, a maior bagagem musical do país. Com méritos ganhou 38 discos
de ouro e 20 de platina, além do título de Rei do Rádio e o Prêmio Nipper, correspondente
a 60 anos de atividade na RCA Victor.
A vida de Nelson nem sempre foi um paraíso, a partir de casamentos
e relacionamentos amorosos mal sucedidos. Preso por envolvimento com drogas, degustou
maus bocados, momentos de tortura e sofrimento para o cantor, familiares e
amigos, infelizmente raros na ocasião. Assim, conheceu os dois extremos da
vida, descendo vertiginosamente do auge da fama para as margens do esquecimento
e da exclusão midiática.
Na prisão, Nelson recebeu a maior manifestação de
solidariedade, quando 3.000 presidiários pediram oficialmente o acréscimo de um
dia em suas penas em favor da libertação do cantor, enquanto entoavam “ A Volta
do Boêmio” no interior do presídio. Com sacrifício e apoio da família venceu as
drogas, retornando aos palcos e paradas de sucesso. Resistiu o alcoolismo,
abandonou o jogo, superou as drogas: em suma um vencedor. Certo que “andou jogado
às traças, mas a Senhora das Graças lhe salvou”, prova de que “depois da
tempestade para quem sofreu vem a bonança”.
Cantou com o coração e por ele foi traído, em 18/04/1998. Vencido por nocaute foi unir-se a outras
estrelas de primeira grandeza no conservatório de Deus, deixando imorredoura
saudade. Saudade de quem aparentemente circunspecto demonstrava com gestos seu
jeito de amar, sensível aos maus tratos as crianças e animais. Quem pretendia “morrer
depois de 2001”, está vivo entre nós e “sem inimigo nenhum”. Assim “A Última
Seresta” nunca será a derradeira.
Ouvir Nelson Gonçalves é deleitar-se no prazer da boa música.
É contemplar em êxtase o sobrenatural, o maravilhoso, o divino, sentindo o
prazer do encantamento; viajar no infinito e testemunhar a união perfeita entre
letra e melodia. É ressuscitar o romantismo expresso em canções, verdadeiras
declarações de amor, sentimento vivido pelo cantor e por nós. É numa apologia
ao amor, recordar a boêmia e exaltar as mulheres.
“A Volta do Boêmio” garante que “A Deusa de sua rua dos
braços não sairá”. Sua voz ainda ressoa agradável como antes, trazendo recordações
que são saudades. Assim ele se fez eterno. Afinal de contas, não morre quem
permanece no coração das pessoas.
A respeito, ressalte-se com louvor Onélia Rocha de Queiroga
em sua obra Nelson Gonçalves: A Voz o Boêmio, que bem definiu: “o silêncio da
voz maior dói(...) Dói na saudade de quem fica, por não poder segurar quem
parte, levando consigo a voz que não é dele, mas de todos nós”.
Em suma, Nelson foi gaúcho de nascimento, paulista no Brás e boêmio
carioca “quando a Lapa era Lapa”. Enfim, brasileiro de todos os recantos.
Para Nelson que cantou o sentimento de muitos e conquistou o
Brasil, receba minha reverência, o tributo de uma legião de fãs.
Pombal, 08
de junho de 2019.
Francisco Vieira |
*Professor e Escritor
NELSON GONÇALVES, A VOZ DO BOÊMIO NÃO CALA
Reviewed by Clemildo Brunet
on
6/14/2019 06:19:00 AM
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