A ÚLTIMA SERENATA
Ignácio Tavares |
Ignácio Tavares*
(Saudade é o passar e o repassar das
coisas antigas) Machado de Assis
Quando fui aprovado no vestibular em 1965,
passei cerca de vinte dias aqui em João Pessoa a fim de resolver minha situação
funcional junto ao Ministério da Agricultura. Em seguida, já refeito da canseira
em razão da sobrecarga de estudos na fase pré-vestibular, retornei a Pombal.
Nos primeiros dias, ainda no calor da euforia,
rolaram parabéns, abraços de familiares, amigos e
amigas que formavam o meu
círculo de amizade. Nos dias seguintes iniciaram as cobranças, pois, os amigos
e amigas mais próximos exigiam uma festa comemorativa. Não dava porque no
momento não dispunha de recursos para bancar uma festa para uma legião de
amigos e amigas.
Com o passar do tempo as cobranças
esmaeceram porque as trombetas já anunciavam as primeiras prévias
pré-carnavalescas. Mas, vez por outra alguém cobrava a tal festinha mesmo que
fosse para um número reduzido de pessoas. Avaliei a proposta, terminei
aceitando a parada.
Foi isso mesmo. Fechado o acerto, passamos a nos encontrar
nos botecos que costumávamos frequentar nos nossos saraus etílicos. Claro que a
bebida mais barata era a que descia a mesa porque o dinheiro era curto. Bota
curto nisso. A verdade é que não pude
fugir aos assédios. No primeiro dia, em meio a tanta conversa, em pouco tempo a
gente consumiu várias meiotas de pitu, claro, antes do horário do almoço. Um
dia a gente se reunia na bodega de Zé Gago, outro no bar de Zé Preto, na bodega
de Manoel Adonias, assim por diante.
Aconteceu que num desses encontros, salvo engano
na bodega de Manoel Adonias, os amigos Tintinho e Luís Camilo sugeriram a
realização de uma serenata como parte das comemorações. Achei interessante a
proposta, posto que, seria uma oportunidade para realizar a última incursão nas
madrugadas da terrinha querida.
Tem mais, o momento era propício porque a
namorada ia estudar fora, portanto, fazê-la ouvir canções de amor no silencio
da madrugada era deveras fascinante. Assim sendo decidimos que o evento seria
realizado na noite seguinte, pois, era preciso nos acertarmos com Tarcísio
Formiga, Raimundo de dona Paulina e Chichico de Dasdores, figuras
indispensáveis às nossas caminhadas cantantes pelas madrugadas afora.
Tudo certo. O evento teria que ser
deslumbrante, apoteótico, porque marcava o fim de um ciclo de serestas que
durou oito anos seguidos. Ademais, em breve o seresteiro-mor viajaria para outra
terra, não muito distante, sem perspectivas de retornar em definitivo ao lugar
natal, a não ser por ocasião das férias. Foi isso o que realmente aconteceu.
Pois é, no dia seguinte convocamos o grupo,
composto por mim, Tarcísio Formiga, Tintinho, Luís Camilo, Raimundo e Chichico.
Todos ratificaram presenças o que nos permitiu fazer a programação, inclusive
definindo as ruas que haveríamos de visitar, para evitar eventuais problemas
que pudessem pôr em risco o sucesso da seresta.
Tudo tinha que ser perfeito, nada de erros.
Para maior segurança marcamos a bodega de Zé Gago, que ficava na lateral
direita da Sociedade Operária, para evitar a presença de outros amigos que
pretendessem nos acompanhar.
Ficamos a conversar até meia noite e meia,
pois tínhamos que recarregar as baterias etílicas para enfrentarmos a emoção da
última serenata depois de tanto tempo a cantar nas madrugadas da terrinha,
justo nos idos de 1965.
Além do nosso grupo ninguém estava a saber que
naquela noite haveria uma serenata de despedida. Escolhemos as músicas, fizemos
um breve ensaio e por volta de uma hora entramos em ação. Convém ressaltar que
o poeta Tarcísio Formiga tinha o importante papel de improvisar recitais logo
após os cantos de Raimundo e Chichico.
Coube a mima fazer a abertura da seresta justo
em frente à casa da namorada. Senti uma certa emoção por se tratar da última
serenata depois de um longo tempo em que estivemos a cantar nas madrugadas da
terrinha querida. Testei o violão para ver se não havia alguma corda desafinada.
Tudo certo. Dedilhei os primeiros acordes introdutórios, em seguida cantei uma
canção apropriada para o momento:
“Esta canção,
que canto ao luar
Eu fiz pensando em você
Há nuvens brancas, soltas no ar
E eu
pensando em você,
Passa o tempo e eu cantando
Para glorificar
....................................
..................................
Esse amor que é tão grande
Igual ao céu e o mar
É tão
sublime amar”
Quando terminei o suor corria por todos os
poros. Não havia como conter a emoção. Luís Camilo me acudiu com uma boa
talagada de pitu acompanhada com um taco de queijo de coalho, pois, foi assim
que pude recolocar os nervos no seu devido lugar. Seguiram outras canções e por
fim cantei a música bem representativa para o momento, qual seja:
“Nesta última
seresta
Tenho o coração em festa
Quando devia chorar
Sigo triste por deixar a boemia
................................................
...............................................
Digo adeus as serenatas
Aos
montes, rios e cascatas,” etc
Terminada a primeira apresentação partimos em
direção a outras ruas qual um madrigal soturno a cantar canções de serestas até
as quatro horas da manhã, quando já despontavam os primeiros raios solares. Com
certeza esta foi a nossa última roda de seresta, pois, em seguida o grupo se desfez
encerrando definitivamente nossas caminhadas cantantes pelas ruas da cidade.
É
verdade, foi mesmo uma noite apoteótica. O nosso poeta Tarcísio Formiga estava
pra lá de inspirado. Toda vez que Raimundo e Chichico finalizava uma música, o
poeta entrava em ação. Lamento muito não ter gravado tão belos versos feitos
especialmente para sensibilizar o coração de quem os escutavam.
Foi assim mesmo. O ciclo de serestas aqui na
terrinha, para nós, terminou justo naquela madrugada. Ao chegar em casa
acomodei o meu violão numa capa com os cuidados de sempre. O meu inseparável
amigo parecia saber que em breve estaria mudando de residência para não mais
retornar. Acompanhou canções, valsas, lamentosas apropriadas para aguçar estado
de espirito de quem as escutavam.
Chegou o dia. Tomei o trem com uma pequena
bagagem, mas com o violão a tiracolo. Ao chegar em João Pessoa, rumei a pensão
Novo Mundo na rua da Areia, onde fiquei por alguns meses. O meu grande amigo,
primo/irmão Edrizio Roque passou a frequentar com certa frequência a minha nova
residência.
Surgiram as primeiras propostas para o meu
reinicio as caminhadas noturnas. Era a cidade grande onde não se falava em
serenata. Estava em voga os saraus na casa de pessoas amigas a envolver um
seleto grupo de pessoas. Fui ao primeiro, gostei até demais. Os convites
passaram a ser mais intensos. Desse modo fomos obrigados a regrar esses
encontros para não nos prejudicar no desempenho escolar.
O que é bom dura pouco. Aconteceu o
inesperado, pois o amigo Edrizio fora atropelado no anel externo da lagoa, por
volta de duas da madrugada quando solitariamente caminhava naquele logradouro
em direção a sua casa. Foi o fim da história de um violonista de habilidade
excepcional.
Dois violões silenciaram. Com a perda do amigo,
aposentei o meu violão. A partir desse infeliz momento assumi comigo mesmo o
compromisso de jamais fazê-lo vibrar as cordas em sinal de luto permanente. Foi
isso o que aconteceu. Por mais que
alguns amigos me convidassem para noitadas de saraus a beira mar, tinha jeito
não, não havia como atendê-los.
Foi isso mesmo e ainda hoje o velho violão,
bem conservado, permanece guardado, ainda com o mesmo jogo de cordas que por
muitas vezes acompanharam os delirantes solos que Edrizio costumava dedilhar, preferencialmente
do repertório de Dilermando Reis.
Esta é uma história que teve início na minha
terrinha querida e terminou nesta terra que me acolheu, deu berço aos meus
filhos, bem como aos netos que estão a chegar. Valeu, porque apesar dos pesares
guardo comigo o relicário de boas lembranças que jamais as esquecerei.
Vivi na plenitude do bem viver, por isso se me
fosse dada a oportunidade de retornar ao passado, fazia tudo do mesmo jeito. Isso
mesmo, tudo do mesmo jeito, sejam as mesmas serestas, os mesmos amigos, amigas,
os mesmos barzinhos, os mesmos sonhos, as mesmas realizações, as mesmas
gostosas caminhadas madrugadas afora.
Reclamar! Nada, porque a vida me foi generosa
sob todos aspectos, por isso só tenho agradecer ao senhor meu Deus que traçou
todos caminhos pelos quais havia de trilhar, embora nada tenha sido fácil,
porque tive que superar todas as pedras que obstaculizaram minha caminhada. Por
isso digo de peito erguido e coração aberto: “confesso que vivi”
João Pessoa 17
de Outubro de 2013
*Economista e Escritor pombalense
A ÚLTIMA SERENATA
Reviewed by Clemildo Brunet
on
10/16/2013 05:02:00 PM
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