Medicalização da vida
Rinaldo Barros |
Rinaldo
Barros*
“Sou humano, nada do que é
humano me é estranho” (Publius Terentius - 185 a.C – 159 a.C.)
A conversa de hoje é um passo na areia de
numa praia onde o poder está com a Medicina. Vejamos.
Allen Frances (Nova York) dirigiu durante
anos o Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM), documento que define e descreve
as diferentes doenças mentais. Esse manual, considerado a bíblia dos
psiquiatras, é revisado periodicamente para ser adaptado aos avanços do
conhecimento científico. Frances dirigiu a equipe que redigiu o DSM IV, ao qual
se seguiu uma quinta revisão que ampliou enormemente o número de transtornos
patológicos.
Em seu livro Saving Normal (inédito no
Brasil), ele faz uma autocrítica e
questiona o fato de a principal referência
acadêmica da psiquiatria contribuir para a crescente medicalização da vida.
Mas o DSM IV acabou sendo um dique frágil
demais para frear o impulso agressivo e diabolicamente ardiloso das empresas
farmacêuticas no sentido de introduzir novas entidades patológicas. Não
soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e
pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de
fácil solução.
O resultado foi uma inflação diagnóstica que
causa muito dano, especialmente na psiquiatria infantil.
Seremos todos considerados doentes mentais?
Eu mesmo me reconheço em muitos desses
transtornos. Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho
uma demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então
provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mãe
morreu, a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em
uma depressão continuada.
É absurdo. Criamos um sistema de diagnóstico
que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais.
Com a colaboração da indústria farmacêutica...
A meu ver, graças àqueles que lhes permitiram
fazer publicidade de seus produtos, os laboratórios estão enganando a maioria
das populações de várias nações, fazendo acreditar que os problemas cotidianos,
na vida e no trabalho, se resolvem com comprimidos. Mas não é assim.
Os fármacos são necessários e muito úteis em
transtornos mentais severos e persistentes, que provocam uma grande
incapacidade, um grande sofrimento. Mas não ajudam nos problemas cotidianos,
pelo contrário: o excesso de medicação causa mais danos que benefícios.
Não existe tratamento mágico – via
medicamentos - contra o mal-estar, pobreza, liseu, desemprego, sonhos
frustrados, falta de afeto, baixa autoestima, monotonia, solidão, dor de
cotovelo...são problemas cotidianos presentes na vida das pessoas, crianças e
adultos.
Parece urgente a necessidade de controlar
melhor a indústria e educar de novo os médicos e a sociedade, que aceita de
forma muito acrítica as facilidades oferecidas para se medicar; o que está
provocando, além do mais, a aparição de um perigosíssimo mercado de fármacos
psiquiátricos, supostamente capazes de reduzir ou combater os mais diversos
transtornos.
Atualmente, já há mais mortes por abuso de
medicamentos do que por consumo de drogas ilícitas. São as doenças
iatrogênicas!
Em 2009, um estudo realizado na Holanda
concluiu que 34% das crianças entre 5 e 15 anos eram tratadas por hiperatividade
e déficit de atenção. Dá para acreditar que uma em cada três crianças seja
hiperativa ou sofra de DDA? Claro que não.
A incidência real está em torno de 2% a 3% da
população infantil.
Cá no meu canto, fico assuntando se, na
medicalização da vida, não influi também a cultura hedonista que busca o
bem-estar imediato, a qualquer preço?
Se decidirmos viver imersos em uma cultura
que lança mão de comprimidos diante de qualquer problema, vai se reduzir a
nossa capacidade de confrontar o estresse e também a segurança em nós mesmos.
Se esse comportamento se generalizar, a
sociedade inteira se debilitará frente à adversidade. Além disso, quando
tratamos um processo banal como se fosse uma enfermidade, diminuímos a
dignidade de quem verdadeiramente a sofre.
Felizmente, está crescendo uma corrente
crítica em relação a essas práticas. O próximo passo é conscientizar as pessoas
de que remédio demais faz mal para a saúde.
Até sociólogo já está metendo a colher nesse
angu. Não vai ser fácil…
*Rinaldo
Barros é professor – rb@opiniaopolitica.com
Medicalização da vida
Reviewed by Clemildo Brunet
on
6/04/2015 08:11:00 AM
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