"HÉRCULES-QUASÍMODO"
José Gonçalves do Nascimento |
José
Gonçalves do Nascimento*
(para lembrar os 116 anos de lançamento
d’Os Sertões transcorridos no último dia 2 de dezembro)
Euclides da Cunha foi um homem do seu
tempo, que escreveu com o olhar e com as tintas do seu tempo. Portanto, não há
que se exigir, passado mais de um século, que ele diga aquilo que no momento
presente nós entendemos como sendo o politicamente correto. Seria puro
anacronismo. Os tempos são outros; os conceitos são outros; os referenciais, em
todos os campos do conhecimento, também são outros.
Ademais, Euclides da Cunha foi um
estilista. Estilista exímio e inimitável, reconhecido pelo melhor da crítica
brasileira ao longo de mais de 100 anos. Ele criou um gênero próprio e único,
cuja característica fundamental é aquela do uso de antíteses e paradoxos, que,
no caso específico d’Os Sertões, tem como marca mais significativa o binômio
"Hércules-Quasímodo", misto de valentia (Hércules) e deformidade
(Quasímodo - uma referência ao monstrengo de Vítor Hugo).
Leiamos, a propósito, o próprio
Euclides:
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. É
desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a
fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e
sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura
normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de
humildade deprimente. É o homem permanentemente fatigado. Entretanto, toda esta
aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer
de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos,
transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente
exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se.
Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e
a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar
desassombrado e forte, e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta,
inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num
desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”.
Trata-se, pois, de uma formulação de
viés poético e literário, que precisa ser lida e interpretada do ponto de vista
poético e literário, e não como um tratado de antropologia, sociologia, ou
coisa semelhante. Nunca é demais dizer que Os Sertões é, acima de tudo, uma
obra de literatura, de poesia, e não apenas um livro sobre a história da guerra
de Canudos.
Há quem alegue que a obra de Euclides é
depreciativa e desrespeitosa para com o sertanejo. Em momento nenhum, todavia,
o autor agride o sertanejo ou falta com respeito para com este. O que ele
afirma, de forma brilhante e épica, é que, à primeira vista, o sertanejo
“parece” “desgracioso”, “desengonçado”, “torto”, em suma: um “Hércules-Quasímodo”.
“Entretanto” (atente-se para a conjunção adversativa), toda essa aparência de
cansaço ilude. Basta o aparecimento de qualquer incidente, e da figura vulgar
do tabaréu, reponta o aspecto dominador de um titã.
O sertanejo, portanto, não só não é
depreciado e desrespeitado, como cresce e se agiganta na poesia de Euclides. A
figura de linguagem por ele utilizada tem por objetivo precípuo realçar a
grandeza, a força, a resistência e a coragem do sertanejo.
Como bom estilista que foi, Euclides da
Cunha usou com maestria os recursos da arte da palavra para enaltecer o sertão
e o sertanejo, resultando daí um dos maiores monumentos da literatura
brasileira de todos os tempos: Os Sertões.
*José Gonçalves
do Nascimento – Poeta e Escritor
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
"HÉRCULES-QUASÍMODO"
Reviewed by Clemildo Brunet
on
12/10/2018 09:21:00 AM
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