POR QUEM OS SINOS DOBRAM
(uma
reflexão sobre a solidariedade)
Começo recorrendo ao
mestre John Donne, citado por Ernest Hemingway, no clássico "Por Quem os
Sinos Dobram": “Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo
homem é uma partícula do Continente, uma parte da terra. Portanto, nunca procures
saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.
Costuma-se dizer que o
que nos une, enquanto humanidade, é maior do que aquilo que nos divide. E é
verdade. Pelo menos nestes aspectos: habitamos sob o mesmo teto, respiramos o
mesmo ar, bebemos a mesma água; vivemos sob o mesmo céu, nos banhamos no mesmo
mar, nos alimentamos dos mesmos nutrientes; temos em comum o nascer, o viver e
o morrer; partilhamos dos mesmos problemas, das mesmas inquietações, das mesmas
incertezas; somos semelhantes em tudo,inclusive na finitude, participamos dos
mesmos destinos,viajamos na mesma embarcação,estamos sujeitos aos mesmos
limites.
Destinos comuns,
inquietações comuns, desafios comuns exigem dos humanos gestos, ações, caminhos
igualmente comuns. Isso implica a capacidade de ver o que se passa no entorno,
de olhar para além do próprio umbigo, de atentar para as angústias do outro, de
deixar o outro falar, de ir além do que se é cobrado, de romper preconceitos,
de ultrapassar fronteiras, de ousar, de provocar, de questionar. Significa
assumir a defesa do outro; mais do que isso: colocar-se no lugar do outro,
sentir a dor do outro, interessar-se pelo outro; correr risco pelo outro.
Implica, às vezes, não apenas ensinar o caminho, mas pegar na mão do outro e
levá-lo até o caminho; não apenas ensinar a pescar, mas também pegar no anzol e
ajudar o outro a pescar; é colocar “o coração na miséria alheia”, no dizer de
Guimarães Rosa; é Ir junto, fazer junto, incomodar-se junto, resistir junto,
lutar junto, celebrar junto...
Carregamos em nós
infinitas possibilidades, entre as quais a de superar o individualismo tacanho
que nos avilta e nos distancia do nosso real papel enquanto membros de uma
comunidade de semelhantes.Carregamos em nós, igualmente, a disposição para
práticas concretas de altruísmo e de dedicação ao serviço da causa humana, bem
como do ambiente em que vivemos, nele incluídos outros seres vivos, a terra, o
mar, o ar, os rios, as florestas.
Só a solidariedade,
como valor universal e intrínseco à natureza humana, é capaz de conceber
relações de paz, de justiça, de tolerância, de respeito às diferenças
(individuais e coletivas), de acolhimento ao migrante, ao refugiado, aos que se
encontram à margem da sociedade, aos excluídos de tudo e de todos.
A solidariedade está na
luta dos defensores do acesso à terra por parte daqueles que dela dependem para
morar, trabalhar, cultivar sua lavoura, alimentar sua criação, comer, beber,
educar seus filhos.
A solidariedade está na
luta dos defensores do uso da moradia por parte de quem não dispõe de um lar
digno onde possa repousar com o mínimo de conforto e segurança.
A solidariedade está na
luta dos defensores das populações de rua, habitantes de outra cidade dentro a
mesma cidade, cidadãos de papel, reféns da culpa de terem nascidos pobres,
pretos, gays, lésbicas, analfabetos, nordestinos, alcoólatras.
A solidariedade está na
luta do povo indígena em defesa do seu direito à terra, aos rios, às florestas,
à caça, à pesca; bem como ao pleno usufruto das suas culturas, das suas línguas,
das suas religiões, dos seus saberes, das suas filosofias, dos seus mistérios,
dos seus feitiços.
A solidariedade está na
luta do povo afrodescendente que a todo momento busca impor-se, ocupar espaços
de decisão, e usufruir de oportunidades iguais em relação aos outros, apesar
dos estigmas do preconceito racial (e classial) de que foi e continua sendo
vítima.
A
solidariedade está na luta política em defesa das liberdades democráticas, na
promoção dos direitos humanos e sociais, na afirmação das minorias, na
preservação do meio ambiente, no fomento de iniciativas que proporcionam o
pleno exercício da cidadania.
A
solidariedade está na luta pela construção de uma nova ordem econômica, com
base nos princípios do cooperativismo, e sem submeter-se à concorrência desleal
e selvagem imposta pela lógica do capitalismo.
A solidariedade está no
testemunho dos profetas do povo, anunciadores da Boa Nova da paz, da justiça, e
co-construtores de uma sociedade de fato civilizada, ética, fraterna e
inclusiva.
A solidariedade liberta, transforma, move montanhas, opera milagres, mexe com velhas estruturas, destrona a estupidez, o egoísmo, o orgulho, o rancor; constrói mundos solidamente saudáveis, forja espaços de exercício da liberdade, de promoção da vida, de devoção à dignidade dos seres humanos; de cuidado com tudo o que existe.
Comecei
com John Donne e termino como Paulo Freire: “A solidariedade tem de ser
construída em nossos corpos, em nossos comportamentos, em nossas convicções”.
*Poeta e
Escritor
POR QUEM OS SINOS DOBRAM
Reviewed by Clemildo Brunet
on
12/22/2018 12:09:00 PM
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