O RÁDIO DO MEU PAI
Por
José Gonçalves do Nascimento*
Em nossa casa o rádio era
quase que um membro da família. E tínhamos para com ele uma relação quase que
de amor. Longe de ser apenas um aparelho receptor de ondas magnéticas, um item
do mobiliário, ou coisa equivalente, o rádio era o símbolo do encanto, da
poesia, do arrebatamento. O rádio nos falou da vida. Nos aproximou do mundo.
Nos instigou a sonhar.
Mais do que uma caixa de
som, o rádio era uma caixa de sonhos.
O rádio unia; conectava;
estabelecia pontes (e pontos) de comunicação – quer no âmbito interno,
familiar, quer no âmbito externo, para além das fronteiras; o rádio marcou
época; formou gerações; forjou culturas e costumes.
Não há como falar do Brasil
sem falar do rádio. E não há como falar do rádio sem falar das divas da voz,
que encantaram o país com suas letras e melodias. Ou do “Repórter Esso”, a
fazer escola entre os profissionais da comunicação. Ou ainda das rádios-novela,
as precursoras dos atuais folhetins, que noite e dia povoam os canais de
televisão.
Da mesma forma, não dá pra
falar do rádio sem acenar para os monstros sagrados da transmissão
futebolística, caso de um Ary Barroso, de um Luís Penido, de um Jorge Cury, de
um Waldir Amaral, ou de um José Carlos Araújo, eles que por anos seguidos
encantaram os amantes do esporte com suas espetaculares narrações.
Poderíamos até mesmo falar
de uma geração do rádio; foi a geração que testemunhou o começo e o fim da
segunda guerra; a chegada do homem à lua (se é que chegou, rsrs); o genocídio
do Vietnã por parte da turma do Tio Sam; as intrigas e futricas da politicagem
do sul; a trama ensurdecedora que obrigou Getúlio a sair da vida para entrar na
história; os rasgos demagógicos de Jânio e JK; a quartelada que alçou os
milicos ao Planalto Central; a verve retumbante de Jango e Brizola; a retórica
ufanista dos propagandistas dos senhores do poder – espécie de fake news a la
Bossa Nova.
Foi a geração que assistiu
de perto à afirmação da cultura nacional; que viu surgir o Cinema Novo; que
cantou com Dalva e Cartola, com Caetano e Gil, com Gonzaga e Jackson do
Pandeiro; que vibrou com o Choro, com o Samba Canção, com a Jovem Guarda, com o
Baião, com o Tropicalismo.
Foi a geração da vanguarda
rebelde. Da grita utópica e revolucionária. Da canção livre e perturbadora.
Embora mais jovem, foi pelo
rádio que inicialmente me pus em contato com as coisas que ocorriam lá fora,
para além dos confins da minha aldeia.
Pelo rádio soube da eleição
de João Paulo II, em 78. Da posse de Figueiredo, em 79. Do fim do exílio de
Arraes, também em 1979. Da morte de Luiz Gonzaga, em 89. Pelo rádio acompanhei
a última partida da copa de 82, quando a Itália bateu a Alemanha por 3x1. O
primeiro comício das Diretas Já, em 84. O discurso de Tancredo na eleição do
colégio eleitoral, em 85. A promulgação da Constituição Cidadã, em 88. Pelo
rádio, ouvi os hits e ritmos que embalaram os anos 70 e 80, levando ao quase
delírio uma juventude cabeluda e boca de sino.
Trago sempre viva a memória
do rádio do meu pai a nos acordar nas manhãs sertanejas; era um Semp, 4 faixas,
grandão, um primor de aparelho; depois vieram outros e mais outros, todos
igualmente primorosos: um Nord Son, um ABC Canarinho, um Campeão Alvorada...
(Os rádios, no geral, eram
fixos, irremovíveis e, não raro, eram posicionados em cima de mesas ou
pedestais onde desfrutavam de destaque absoluto, igualando-se às vezes a
objetos sagrados).
O programa favorito naquelas
primeiras horas do dia era via de regra a “Linha Sertaneja Classe A”, do Zé
Bettio, na antiga Record de São Paulo; era ao som do seu repertório –
repertório que ia desde Inezita Barroso a Tião Carreiro e Tonico & Tinoco –
que meu pai se arrumava todas as madrugadas a fim de enfrentar o batente.
Batente que só se findava,
de fato, às 7 da noite, quando vibravam os primeiros acordes do Guarani, de
Carlos Gomes, introduzindo a Voz do Brasil e, com ela, o noticiário do dia.
O rádio foi assim uma
espécie de trilha, a conferir alma e ritmo aos nossos dias – desde a alvorada
até o anoitecer. Com ele despertávamos e com ele repousávamos. Com ele
transpúnhamos fronteiras e com ele varávamos a noite. Com ele mergulhávamos na
ilusão e com ele perseguíamos a utopia.
O rádio fez-se norte. Fez-se
luz. Fez-se um pássaro misterioso a semear encantos pelas paragens desertas de
vozes e de ouvidos. O rádio fez-se eterno.
*Escritor
e Poeta
O RÁDIO DO MEU PAI
Reviewed by Clemildo Brunet
on
6/26/2019 05:28:00 AM
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