JOÃO GRANDE
José Gonçalves do Nascimento |
Por
José Gonçalves do Nascimento*
João Grande foi um
mestre, no sentido mais pleno da palavra. Com ele aprendi as coisas do céu e as
coisas da terra. A bem da verdade, mais as coisas da terra do que as do céu.
Do céu, aprendi que
Deus não trabalha sozinho; aliás, nunca trabalhou sozinho; sempre dependeu da
gente pra agir nesse mundo; aprendi que são os homens – os homens e as mulheres
– quem na verdade fazem os milagres, cabendo a ele – a Deus – apenas o
consentimento; os homens – os homens e a mulheres – seriam, assim, os olhos, a
mente, o coração, os pés, os braços e as mãos de Deus.
Da terra, aprendi,
entre tantas coisas, que o sentido da existência está no colocar-se na
perspectiva do outro, já que ninguém é sozinho, um toco seco em meio à solidão
do deserto; o valor das coisas está na festa da partilha; no mutirão do ter e
do fazer desinteressado que cria laços e comunhão; na mesa da acolhida fraterna
donde ninguém jamais será expulso; aprendi que nada é de ninguém e ao mesmo
tempo é de todo mundo; as terras, as casas, os rios, os bichos, tudo é de
todos; a propriedade é um acinte; uma subversão da ordem; uma usurpação; um
ludibrio; nada nesse mundo é nosso, a não ser o sentimento, a dor, o riso, o
prazer, a possibilidade de ser ou não feliz; nada possuímos, porque, na
verdade, nem a nós mesmos possuímos; ao fim e ao cabo, restará tão somente uma
página vazia, amarelecida, como reminiscência de qualquer coisa (pouca coisa)
que ficou para trás; nada mais do que isso.
João Grande foi um
caminhante infatigável. Um fazedor de caminhos (no sentido de que é caminhando
que se faz caminho). Aliás, sua vida inteira foi um constante caminhar. Não há
qualquer vereda desse mundão por onde não tenha ele caminhado. O caminho foi o
seu pão. A sua água. O seu remédio. O seu alento: caminhou para viver. Para
vencer. Para ser livre. Fez do seu caminho sua defesa: esmagou feras.
Serpentes. Escorpiões. Sina de gente grande: caminhar é próprio dos grandes.
Dos guerreiros. Dos profetas. Dos menestréis. Dos sonhadores. Dos românticos.
Só quem caminha é capaz de alcançar o horizonte. Caminhando, alguns conquistaram
impérios. Outros arrebanharam fiéis. Outros ainda semearam sementes. Em todos
eles, vibrou a chama inquietante que rompe o comodismo. Que dirige cada passo
em direção à luta necessária.
João Grande foi um
construtor; construiu suas próprias casas; as suas e as dos seus; e o fez com a
maestria do autodidata atento e caprichoso, em nada deixando a desejar;
tornou-se perito nesse mister, quase não havendo quem a ele se igualasse;
assim, durante anos a fio, desfrutou de prestígio quase que absoluto; não havia
estágio de uma construção, por maior que fosse, que ele não tirasse de letra;
dos alicerces ao acabamento, tudo era pensado com o esmero de um artista.
João Grande, além de
construir (suas próprias casas e as dos seus), ainda produzia os materiais empregados
em suas obras, como portas, janelas, vigas, cumeeiras, ripas, caibros, telhas,
tijolos; era com ele, também, o fabrico das ferramentas utilizadas na faina
diária; fabricava de um tudo, desde colheres, trenas, réguas, esquadros,
prumos, formões, enxós, até serrotes, plainas e martelos; João Grande cuidava,
ainda, dos utensílios domésticos, dedicando-se ao feitio de pratos, panelas,
talheres, colheres de pau, xícaras, bacias, gamelas, moringas, aribés,
urupembas, pilões, moinhos, cuscuzeiros, chaleiras, cafeteiras, tachos, baús, e
tantas outras miudezas.
João Grande não se
desgrudava nunca do seu caminho. Desdobrava-se entre os afazeres de pedreiro,
carpina, ferreiro e artesão. Sua rotina era nos matos, cortando e lavrando
paus. Nas olarias, moldando telhas e tijolos. Ou nos fundos da própria casa,
onde desempenhava o restante dos seus ofícios.
João Grande também quis
cuidar da morte. Da morte dos outros e da dele. Fez-se exímio no fabrico de
caixões. E sempre que solicitado (obviamente por parte dos vivos), colocava-se
a serviço dos mortos. Melhor: do repouso dos mortos. A cada apelo, em auxílio
de algum ente que partiu, se embrenhava nos matos, facão e machado a postos, à
caça dos viçosos mulungus, cujas tábuas davam forma e contorno às cerimoniosas
peças fúnebres de que era encarregado.
Quem hoje passar pelo
caminho, tantas vezes trilhado por João Grande, encontrará em algum lugar um
velho mulungu de um galho só. O outro galho foi o utilizado, pelo próprio João
Grande, ainda em vida, para fazer o caixão que lhe serviu de abrigo na etapa
final do seu perene caminhar.
*Poeta
e Escritor
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
JOÃO GRANDE
Reviewed by Clemildo Brunet
on
2/21/2019 03:21:00 PM
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